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sábado, 6 de abril de 1996

Os evangélicos e o mito da democracia racial

A senadora do Rio denuncia que existe racismo nas igrejas

Jorge Antonio Barros

Fotos de Frederico Mendes

Carlos Fernandes
A senadora Benedita garante que não vai se candidatar à prefeitura do Rio de Janeiro

Quando surgiu no cenário político carioca uma vereadora negra, favelada, petista e evangélica, ninguém jamais imaginou que aquela mulher pudesse ir tão longe. Uma década depois, ela ocupa uma cadeira no Senado da República, exatamente com o mesmo perfil que a lançou nas urnas do Rio. As únicas diferenças entre a vereadora Bené e a senadora Benedita da Silva - 54 anos completados no dia 11 de março - talvez sejam o crescente acúmulo de votos (para o Senado conquistou dois milhões de eleitores), a bagagem conquistada com a experiência política e o conhecimento do mundo em viagens que a levaram, por exemplo, à Conferência de Pequim, onde foi discutida, no ano passado, a situação da mulher no mundo. "Nós, mulheres brasileiras, avançamos, mas ainda estamos aquém", lamenta a senadora, dois filhos, quatro netos e dois enteados - entre eles a atriz Camila Pitanga - filhos do ator e vereador Antônio Pitanga, com quem se casou há dois anos. Eles vivem numa casa confortável no morro Chapéu Mangueira, favela na Zona Sul do Rio. Pitanga não é evangélico, mas costuma acompanhar a mulher, nos cultos da Assembléia de Deus no Leblon, embora Benedita agora seja membro da Igreja Presbiterana Betânia, em Niterói - a mesma do reverendo Caio Fábio. Avessa à política neoliberal do governo Fernando Henrique, a senadora critica também o governador do Rio, Marcelo Alencar, e o prefeito da cidade, César Maia.

Em entrevista à VINDE, Benedita reclama da falta de espaço para a mulher, dentro e fora da igreja, explica que a postura do PT não influencia seus princípios cristãos e é dura nas denúncias de racismo e machismo nas igrejas evangélicas. "Você já viu missionário negro estrangeiro pregando no Maracanã, indaga a senadora, que não vai se candidatar à prefeitura do Rio. "É uma etapa superada".

Como ocorreu sua conversão e quem pregou o Evangelho à senhora?

Os crentes visitavam minha casa, mas eu era uma católica convicta, da Legião de Maria. Mesmo assim, havia em mim um vazio que eu não entendia. Na minha casa havia uma Bíblia, e nela estava escrito: "Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará." Este versículo criou em mim uma ansiedade para encontrar esta Verdade. Até que, um dia, fui à Assembléia de Deus de São Cristóvão. O pastor perguntou quem queria aceitar Jesus e levantei a mão. Quando contei para meu marido, ele riu. Parei de fumar e dei minhas roupas decotadas e imagens de santos. Peguei um vestido de manga, que era forro do travesseiro, e passei a usar. Era a única roupa que eu tinha para ir à igreja.

A senhora também diz que o Evangelho deu mais dignidade à sua vida. Como foi isso?

Eu levava uma vida de miséria e vergonha. Eu era revoltada e sectária, tinha vontade de pegar uma bomba e sair destruindo as autoridades que nos abandonam. O encontro com Jesus me mostrou meu valor. Comecei a me sentir inteligente, bem por dentro. Passei a compreender tudo o que me cercava. Pude enfrentar as adversidades sociais sem me abater. Prossegui com o trabalho comunitário, mas aí era diferente. Minha forma de disputa política passou a ser mais humana. Compreendi que o diálogo é o único meio de convencimento. Fora disso, é sectarismo.

Como a senhora chegou à decisão de se candidatar pela primeira vez, sendo membro da Assembléia de Deus e do Partido dos Trabalhadores?

Foi com a visão de que as mulheres eram importantes para a vida social, política e religiosa, mas não tinham uma oportunidade. Eu sentia esta dificuldade nas disputas de associações de moradores e, posteriormente, no próprio partido. Na época, eu era do MDB. Algumas mulheres se destacavam porque eram de classe média, intelectuais, mas não tinham poder. Fundamos o PT com a compreensão de que este era o partido em que as mulheres, os pobres e os trabalhadores teriam voz e vez.

E como se deu esse processo de compatibilização entre cristianismo e socialismo?

Confesso que não houve compatibilização. Pelo contrário, foi um choque. Acho que fui a primeira mulher que saiu candidata dentro da Assembléia de Deus. Nunca usei o púlpito para fazer pregação política. Tinha meu testemunho de vida, mas achavam que eu deveria sair da militância, que isso não era coisa de crente. Decidi ficar no partido, mas sem me envolver muito. Fui amadurecendo com o tempo. Passei a ter mais discernimento e entender que Deus deu tarefas para o ser humano. Não precisava me sentir culpada por realizar este trabalho político. A Palavra de Deus diz que aqui teríamos aflições, mas Jesus venceu o mundo. Vencer aqui é não abrir mão da convicção religiosa e a cada dia estar como sal e luz no meio da massa, trabalhando. Eu sabia o que era fome, prostituição, marginalidade. Não podia passar por cima. Não era para me assentar na roda dos escarnecedores, mas dos que estavam com fome e não tinham o que comer, estavam nus e não tinham o que vestir, estavam presos e não havia quem os visitasse.

Esta visão mais progressista das Escrituras não a ajudou dentro da igreja?

Para a igreja, estas coisas são colocadas na área do assistencialismo, do sentir pena, por exemplo, de um homossexual porque está em pecado. Só se pensa na sexualidade, não no indivíduo todo, com direito de estudar, trabalhar e ter salário igual. Isso é tão forte que se acaba aceitando a marginalização destas pessoas por causa de sua opção sexual. Ele tem um direito como cidadão que não lhe é dado.

Carlos Fernandes
Só se pensa na sexualidade, não no indivíduo como um todo. O homossexual tem direito como cidadão, que não lhe é dado

Por que ainda hoje a Igreja Evangélica tem preconceitos contra o PT?

O PT é interessante. No início, disseram que era o partido dos estudantes. Depois, dos intelectuais. Mais adiante, da Igreja Católica por causa de Frei Reno, Leonardo Boff e outros. Atribuo tudo isso à falta de politização. Sendo um partido muito contestado, a igreja luta para que não se fique nele. Não compreendem que, se tenho sucesso político, é porque Deus me dirige e abençoa neste partido. Perguntam para mim se o PT é a favor do aborto. O PT defende a descriminação do aborto, que a mulher não deve ser condenada. Mas esta não é a visão geral do partido. Eu, por exemplo, sou inteiramente contra. Do ponto-de-vista religioso, não há o que discutir. Do ponto-de-vista social, as mulheres abortam mesmo, estão morrendo, são estupradas. Devem ser criadas políticas de combate ao aborto, dando condições de trabalho a estas mulheres, garantindo que elas não ficarão desamparadas, que seus filhos terão creches. Já fiz um aborto, antes de conhecer a Cristo. É uma situação degradante e traumática. No PT, questões de foro íntimo não são fechadas.

O PT fecha questão sobre o casamento de homossexuais?

Não. Isto sequer foi colocado no programa do partido. O que o PT colocou e tratou foi o seguinte: um homossexual tem apartamento, dinheiro e tudo o mais. Vive com uma pessoa, enquanto a família não quer saber. Aí ele morre e a família pega tudo. Quem ficou cuidando não tem direito a nada. O assunto discutido no PT foi o da herança, um direito civil. É o mesmo caso dos filhos nascidos do casamento e dos outros nascidos de relação extraconjugal. Uns tem direito e os outros não? O partido tem um centralismo democrático, mas cada parlamentar tem direito de apresentar suas teses.

A senhora acha que existe machismo dentro das igrejas?

Existe. O machismo não é coisa da igreja, é das pessoas. Existe em qualquer instituição. Nós, mulheres, temos consciência disso e lutamos. Nem sempre as pessoas percebem nossa contribuição. Estive na Conferência Mundial de Pequim e pude ver o quanto a mulher progrediu, mas não conseguiu alcançar esta instância de poder.

E racismo, existe?

A igreja também vive o mito da democracia racial, a idéia de que temos uma sociedade altamente miscigenada e o negro tem seu lugar, como o mulato, o moreno etc. A sutileza deste mito se pode ver nas instâncias de poder de decisão. Onde os negros estão? Quais as grandes sedes que administram? Estão nas congregações, lugares longínquos. Já viu missionário negro estrangeiro fazendo pregações no Maracanã? Quem convidou Jesse Jackson ou Desmond Tutu? Isso não acontece nos Estados Unidos. Lá, a igreja negra se impõe. Onde você encontra os negros em nossas igrejas? Nos cânticos. Mesmo assim, os cantores negros têm dificuldades, a doutrina protestante brasileira não permite ascensão de individualidade. Às vezes, até se confunde com o PT (risos). Quando um parlamentar se destaca, a direção diz que é individualismo. As personalidades são puxadas para baixo.

Qual a sua opinião sobre a descriminação da maconha?

Tenho pouco conhecimento, não posso falar. Penso que ela é usada por um contingente muito grande e pode ser utilizada no campo da medicina, mas ainda não tenho uma posição, não sei das perdas e danos. Só sei que droga mata. Sou contra as drogas, mas quero tratá-las como trato todos os assuntos considerados polêmicos pela igreja. Quero que haja combate ao narcotráfico. Não há investimentos neste sentido no Brasil. Não é como as casas de recuperação que abrimos aqui, depósitos de abandonados. A igreja brasileira precisa envolver-se, não apenas com ação assistencialista, mas também de reintegração do indivíduo e combate à droga.

Carlos Fernandes
Já fiz um aborto antes de conhecer a Cristo. É uma situação degradante e traumática

Suas posições progressistas a distanciam de outros políticos evangélicos?

É impressionante. Os políticos evangélicos, em sua maioria, estão em seus partidos, os defendem, negociam apoio com o governo e tudo o mais. Quando é com o PT, me cobram como evangélica, não como petista. Vêm de Bíblia na mão querendo me doutrinar. Eu digo: "Olha, vocês votaram causas que, para mim, são abomináveis aos olhos de Deus. Estou votando coisas relativas a direitos dos trabalhadores, à reforma agrária." Querem que eu ignore concepções políticas que envolvem determinadas matérias. Por exemplo, concessões de rádio. Seja para quem for, quero que obedeçam o critério estabelecido pelo Conselho. Não é uma coisa de arranjo. Lembro-me que, na luta pela reforma agrária, muitos evangélicos votaram com a antiga UDR (União Democrática Ruralista). Quando o PT votou, não o fez com a concepção marxista, mas com a humana, de terra para quem nela trabalha. E eu votando com a Bíblia: "Crescei, multiplicai-vos e enchei a face da Terra." Mas como, se não há espaço?

A senhora esteve recentemente em Cuba. Como funciona a Igreja Evangélica de lá?

Não tive oportunidade de visitar igrejas. Voltei por causa das enchentes no Rio. Mas estive com o embaixador brasileiro, que é presbiteriano. A Igreja está caminhando, queixosa na questão da liberdade. Não existe uma propagação do Evangelho pelas ruas, como aqui. O povo de Deus está trabalhando dentro da abertura que Fidel (Castro) dá. A maior preocupação é não permitir infiltração de costumes americanos na religiosidade.

E qual é o futuro do socialismo no Brasil diante do neoliberalismo?

Tenho esperança de que esteja próximo. O projeto neoliberal é desintegrador, não combate a fundo os problemas de saúde, fome, bem-estar. Ele maquia e desorganiza a sociedade.

Que avaliação a senhora faz do governo de Fernando Henrique Cardoso?

O governo FHC teve respaldo político. Poderia ter avançado se sua proposta fosse, pelo menos, da social-democracia. Tenho certeza que os próprios tucanos se ressentem disto.

Por sua participação no movimento popular e seu destaque no cenário nacional, a senhora admite a possibilidade de um dia candidatar-se à presidência da República?

A política tem seu próprio giro. Não dá para dizer: "Serei isso ou aquilo." Me disponho a lutar, mas dentro da conjuntura. Tenho um ano de Senado. A gente pode até dizer: "O Lula perdeu duas vezes, não dá mais." Mas (François) Miterrand ganhou na quarta.

E a prefeitura do Rio? Por que a senhora não vai se candidatar este ano?

A prefeitura, para mim, é uma etapa já superada.

Mas a senhora não foi eleita.

Lamentavelmente a população do Rio de Janeiro perdeu. Veja as chuvas. Nosso projeto parecia simples demais, mas era o melhor para a cidade porque levava em conta a questão da segurança pública, que não se resume ao armamento da polícia. Era, sobretudo, de sustentar esta população com política de geração de empregos, de habitação popular, de contenção de encostas, de melhor transporte. Meu projeto continua sendo o mesmo, mas minha disponibilidade é outra.

Quais são as principais falhas que a senhora vê na administração Cesar Maia?

Ele falhou o tempo inteiro. Foi prepotente, enganador. O Cesar Maia foi uma farsa.

Que motivos o governador Marcello Alencar tem para constantemente atacar a Fábrica de Esperança e o reverendo Caio Fábio?

Penso que o governador sofre a síndrome da perseguição. Qualquer coisa que pareça uma contestação a seus erros ou suas responsabilidades é uma ameaça. Esta síndrome faz com que ele veja em qualquer líder um candidato em potencial ou um fiscalizador contumaz de seus erros em cada pessoa de boa-fé desta cidade.

Como a senhora vê a posição de alguns setores evangélicos que pensam que os crentes devem ter um candidato à presidência da República?

Os evangélicos devem ter um bom político, um bom administrador, como seu candidato. Pode ser um de nós, mas não necessariamente. Precisamos ter uma visão mais ampla das necessidades da sociedade. Se levarmos para nossas concepções doutrinárias sobre como a pessoa deve se comportar, seremos injustos em nossas administrações. Querer impor este comportamento à sociedade seria um desastre. Mas se tivermos uma compreensão política de justiça social e crescimento econômico, aí sim.

Muitos pastores levam candidatos ao púlpito. Qual é a sua opinião sobre esta prática?

O pastor deve proceder mais claramente. Não dá mais para fazer da igreja massa de manobra. Ele deve abrir o debate político, colocar seus interesses, sua posição e seu candidato. Temos que democratizar a política na igreja. Uma pessoa não deve receber o voto por ser um irmão, mas por ter uma proposta política. Vamos deixar dessa desfaçatez de dizer: "A gente não se mete em política, mas aqui está o irmão Fulano." Então quem não faz política é a base, porque a cúpula faz. A Universal faz isto escancaradamente. A CNBB está botanto para quebrar. O tema agora é fé e política. Alguém pode dizer: "Ela não está induzindo para qualquer partido", mas está assumindo uma posição política. A igreja deveria fazer isto.

Carlos Fernandes
Um candidato não pode receber votos por ser um irmão na fé. Vamos deixar essa desfaçatez: "A gente não se mete em política, mas o irmão Fulano é candidato"

Qual foi sua maior decepção no meio evangélico?

Não diria decepção, mas frustração com a falta de crescimento político que a gente tem no meio evangélico. Vou pegar os Estados Unidos como referência, as coisas que deveríamos imitar e não o fazemos. No culto de uma igreja americana, o pastor fala de racismo e ninguém discute. Aqui, dizemos que todos somos irmãos e isto não existe. Temos que tratar este mal. Dizem para mim: "Não, minha irmã, não existe racismo, não existe nada contra as mulheres." Onde elas estão? Na cantina, na Escola Dominical, cumprindo papéis sem destaque. Como as mulheres recebem elogio? "A minha esposa é maravilhosa, chego em casa e minha comida está ótima. Saio para a pregação e a ela fica com meus filhos." E quando tem uma Benedita, evangélica, com 'as atitudes que tenho, as primeiras a me enquadrar são as próprias mulheres.

Qual a sua maior alegria como evangélica?

É ser evangélica, ter Cristo na minha vida. O que eu contesto são coisas nossas, do corpo humano, não do Corpo de Cristo. Minha oração se torna cada dia mais curta, mas não é tão pequena que não possa dizer e repetir: "De que vale ganhar o mundo inteiro e perder a alma?" Este é o resumo de tudo para mim. Sou uma apaixonada, frágil. Agradeço a Deus pela salvação, pela minha vida, e busco n'Ele o caminho para recuperar o tempo perdido e poder servi-lo melhor. Dedico tudo a Deus, inclusive minha vida política.

O que a senhora acha das criticas que são feitas aos evangélicos por causa das igrejas que têm uma politica agressiva de arrecadação de dinheiro?

Aí é igreja como instituição, não como corpo de Cristo. É capitalismo. Na minha visão, passa a ser empresa. Sou dizimista e penso que uma igreja deve buscar entre os membros os recursos para implantar as idéias de evangelização. O dízimo é para ir para a casa do Senhor, para as obras importantes para a evangelização. Fazer disso uma empresa para tirar de quem não tem e usar aquela oferta da viúva, aí estaremos abandonando outros capítulos da Bíblia, que falam para cuidar bem delas. Entrego meu dízimo com a maior convicção, e sei que as pessoas que estão sustentando essas fábricas de fazer dinheiro que existem por aí, estão fazendo por fé, com inocência. Mas a Palavra de Deus diz que cada um dará conta de si.


Extraído Entrevista. Revista Vinde, Rio de Janeiro, ano 1996, a. 1, ed. 6, p. 6-10, abr. 1996.

sexta-feira, 1 de dezembro de 1995

Um chute na Fábrica de Esperança

Governador do Rio, Marcello Alencar, faz acusações aos responsáveis pelo maior projeto social do país

Por Carlos Fernandes


Carlos Fernandes
A passeata Reage Rio solidarizou-se com o drama vivido pela Fábrica de Esperança

Como se usasse uma boca com biqueira de metal, o governador do Estado do Rio, Marcelo Alencar chutou sem piedade a Fábrica de Esperança, o megaprojeto social da Vinde (Visão Nacional de Evangelização) e um dos símbolos do movimento Viva Rio, contra a violência e pela recuperação econômica e social do Rio. A apreensão de drogas numa área isolada da Fábrica, em Acari, no dia 23 de novembro, foi usada pelo governador, como um pretexto para atacar duramente os responsáveis pelo projeto social. Marcello lançou suspeitas sobre a idoneidade dos organizadores, afirmando estar convicto de que o local serve de fachada para depósito e distribuição de drogas. Irônico, chegou a chamar o projeto de "fábrica da desesperança".

A atitude do governador foi classificada dc "leviana, irresponsável e precipitada" pelo reverendo Caio Fábio D' Araújo Filho, idealizador do projeto, que se revelou perplexo com a reação de Marcelo Alencar. Em entrevista coletiva, no dia seguinte, Caio mostrou-se triste e afirmou que sua intenção nunca foi a de "bater de frente" com o governo do Estado. "O governador foi, no mínimo, precipitado, pois fez declarações antes de as investigações estarem conduídas", disse o reverendo. Ele desabafou, dizendo que o projeto é sério e lamentando que os traficantes possam ter escondido "essas porcarias" dentro da Fábrica. Ele admite que, por estar no meio de uma região perigosa ("aquilo é um barril de pólvora", afirmou), a Fábrica de Esperança está exposta a todos os tipos de riscos, inclusive a ação das quadrilhas da região. O fato de a apreensão ter ocorrido dias antes da passeata Reage Rio levou o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, a imaginar que tudo pode ter sido "uma armação" com a intenção de esvaziar o movimento.

Apoios - Ao contrário da imagem da santa que não pode reagir, a sociedade civil respondeu prontamente às acusações do governador. Representantes de todos os segmentos da sociedade - entre religiosos, sindicalistas, políticos e organizações não-governamentais - deram apoio ao reverendo Caio Fábio e aos diretores da Fábrica de Esperança. manifestando repúdio à intenção do governador de tentar vinculá-los ao tráfico de drogas. Quatro dias depois dos dardos do governador, mais de quinhentas pessoas participaram de ato público em apoio à Fábrica. O antropólogo Rubem César Fernandes, coordenador do movimento Viva Rio e um dos organizadores da passeata, disse que Caio Fábio "é um homem rigoroso e está acima de qualquer suspeita". A senadora Benedita da Silva (PT-RJ), acusou Marcelo Alencar de investir no caos num momento em que a sociedade se une para pedir mais segurança. Benedita considerou um absurdo suspeitar-se que o reverendo Caio Fábio, pastor evangélico há 22 anos - reconhecido internacionalmente como um sacerdote engajado em ações sociais - tenha qualquer envolvimento com o tráfico de drogas.

O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, presidente do Ibase e símbolo nacional da luta contra a fome e a miséria, solidarizou-se com o trabalho desenvolvido pela Fábrica de Esperança, considerando que ele é realizado "em condições excepcionais e em meio à mais profunda miséria". O reverendo Caio Fábio começou a receber centenas de mensagens de apoio vindas de todo o país e os jornais publicaram cenas de solidariedade ao seu trabalho e de repúdio às declarações do governador. Numa delas. Marcelo afirmou que as organizações não-governamentais devem se livrar de "aventureiros com capa de generosidade". Os parceiros da Fábrica demonstraram total solidariedade e manifestaram claramente a intenção de manter seu apoio. Representantes da Xerox do Brasil, Golden Cross e Curso Yázigi reafirmaram sua confiança nos responsáveis pela Fábrica, e confirmaram que todos os convênios em andamento serão integralmente mantidos. Viviane Senna, que estava no Japão, telefonou para informar que vai manter seus projetos.

Boa parte da opinião pública está convencida de que o governador teve a intenção de dar o maior destaque possível ao caso, numa tentativa de enfraquecer a passeata Reage Rio que, entre outras coisas, colocaria em xeque a política de segurança do Estado, num momento em que se evidencia o recrudescimento da violência. Segundo estatísticas do Instituto Médico Legal - IML -, o número de assassinatos no Estado do Rio, de janeiro a novembro, chegou a 4.269, numa trágica média de 12 homicídios por dia. Até outubro, a Secretaria da Segurança Pública contabilizou 88 sequestros, ao mesmo tempo em que cerca de 160 crianças estão desaparecidas. Entre assaltos a bancos, roubos e furtos de carros e cargas, foram registrados mais de 33 mil, deixando clara a ineficiência do governo do Estado do Rio no controle da violência.

Providências - O reverendo Caio Fábio anunciou providências imediatas, como um levantamento completo sobre todos os funcionários da Fábrica, inclusive de seus antecedentes, na tentativa de descobrir qualquer envolvimento ou eventual conivência de algum deles com as atividades dos traficantes do complexo de favelas da região. Uma comissão de sindicância interna foi instalada. Além disso, a segurança vai ser terceirizada e ampliada. Até então, havia apenas 16 homens em três turnos, para vigiar uma área de 55 mil metros quadrados. Lembrando que é "o maior interessado em que tudo seja esclarecido", Caio Fábio recorreu ao Ministério Público para investigar minuciosamente o ocorrido. Com relação às acusações de Marcelo Alencar, o reverendo explicou que esperará a conclusão das investigações para decidir que providências tomará, mas a possibilidade de interpelar judicialmente o governador não está afastada. "Uma coisa é certa: eu não vou agir da mesma forma precipitada que o governador está agindo", afirmou. Caio Fábio estranhou ainda o fato de o governador e o prefeito terem afirmado que já tinham suspeitas a respeito das atividades da Fábrica. "Se era assim, por que eles não nos avisaram?"

Dizendo que sua função não é policialesca - "nós não perguntamos quem são os pais das crianças e jovens que se beneficiam do nosso trabalho" o reverendo criticou o governador por não controlar a entrada de drogas no Estado.

A ameaça de Marcelo Alencar, que dedarou que a Fábrica de Esperança poderia até ser fechada em consequência do episódio, foi desaprezada pelo reverendo, que lembrou que o projeto não é um órgão governamental e não pode ser desativada pela vontade do governador. Ele reafirmou sua expectativa de que o movimento Reage Rio atingiria plenamente seus objetivos. "Se alguém pensou que ia desmobilizar a manifestação, o tiro saiu pela culatra; caminhamos unidos pela paz nas ruas", disse o pastor após participar do Reage Rio, que parou a cidade no dia 28 de novembro.

Uma força de paz em território minado

Por Zuenir Ventura

Carlos Fernandes
Zuenir: apoio total à Fábrica

A experiência da Fábrica de Esperança é um projeto pioneiro. E uma força de paz no "front" da guerra. Equivale àquelas operações da Cruz Vermelha, no meio do fogo cruzado. Além de vidas, a Fábrica de Esperança também quer salvar almas. Não quer apenas retirar as pessoas da linha de frente, mas dar a elas condições de viver com o mínimo de dignidade. A fábrica combate o bom combate. Quer transformar futuros soldados dessa guerra suja em grandes cidadãos. Eu digo isso com tranquilidade e total isenção porque acompanhei o projeto da Fábrica desde o começo.

Devo ter sido um dos primeiros a descobrir que estava acontecendo ali em Acari, numa das regiões mais áridas do Rio, uma história de esforços reais em favor da paz. Sou testemunha também de que a Fábrica foi madrinha do belo casamento entre a economista Clarice Pechman, fundadora do movimento Viva Rio, e Salo Seibel, do PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais), um dos sócios da Formitec, que doou à antiga fábrica ao pastor Caio Fábio. A Fábrica é o maior monumento à paz, à reconstrução da cidade, que já foi feito. Não conheço no país outro projeto social com essas dimensões. Mas a Fábrica não é apenas um marco simbólico do Viva Rio. Se fosse só simbólico, já seria bom. Mas, melhor ainda, é uma ação concreta que supre a ausência do poder público, numa área conflagrada.

Outro dado interessante nesse projeto é a participação dos evangélicos, representados pelo pastor Caio Fábio. Antes de conhecer o trabalho dele, na Fábrica, eu tinha uma visão maniqueísta sobre os evangélicos. Para mim, os movimentos dirigidos por eles eram todos suspeitos. Ali tive uma grande revelação. Comecei a descobrir o conteúdo social do projeto. Ao escrever Cidade Partida, me desfiz de muitos estereótipos que são reproduzidos por nós mesmos da imprensa. Um deles era a participação dos evangélicos em obras sociais. A Fábrica me revela o que é uma força de paz num território minado, em pleno centro urbano do Rio de Janeiro.


Zuenir Ventura, 64 anos, é escritor e jornalista há 39 anos. Colunista e editor especial do Jornal do Brasil, contou uma parte da história da Fábrica de Esperança no livro Cidade Partida, da Companhia das Letras.



Revista Vinde - Edição 3

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