Ação da Cidadania contra a Miséria pela Vida é um movimento autônomo, descentralizado,
que tem a parceria como filosofia principal de trabalho. Em 1993, depois que a sociedade
organizada venceu a batalha do impeachment do então presidente Fernando Collor,
as entidades da sociedade civil que se aglutinaram em torno do impeachment se
reuniram para pensar numa forma de não desmoralizar sociedade, numa maneira de canalizar
a força da indignação da sociedade para mais uma causa ética.
O combate à fome e à miséria nasceu de um conceito tão simples quanto a frase que o resume:
"democracia e miséria são incompatíveis". A sociedade brasileira podia se orgulhar de ter
derrubado um presidente da República dentro das regras democráticas e em respeito a todas
as instituições.
"A comunidade evangélica há muito tempo já demonstra seu enorme sentido social"
Hoje, ao entrar no seu terceiro ano, a Ação da Cidadania já contou com a participação de
cerca de 28 milhões de pessoas no país inteiro, mobilizou todos os segmentos da sociedade
para o combate à fome e à miséria e para a necessidade de geração de emprego. Desde o começo,
a proposta da Ação da Cidadania foi deixar de esperar por ações estruturais que não estão ao
alcance do cidadão, mas estimular o gesto imediato, a solidariedade de dar um quilo de alimento
a quem tem fome. Partir para ações emergenciais sem esquecer de que as ações estruturais são necessárias.
Um dos objetivos dessa campanha é o de promover um encontro dos mais diversos setores da sociedade.
Antes, as ações e reivindicações se limitavam a grupos políticos ou a determinadas classes e segmentos
da sociedade. Estamos inventando uma nova forma de fazer política, com a participação de toda a sociedade
civil.
Neste sentido, a participação da comunidade evangélica é fundamental. Esta é uma comunidade que há muito
tempo demonstra seu enorme sentido social e preocupação com o problema da miséria e que também já mostrou
que é capaz de realizar grandes ações. Mas a ação não pode parar. Cada grupo deveria se reunir e pensar
no que pode fazer de útil à sociedade dentro de área, de seu conhecimento, enfim, dentro do que estiver
ao seu alcance. Muita gente já começou a fazer isso e à medida que estas ações crescem, cresce também a
nossa cidadania. Cada igreja, cada núcleo, pode se tornar um comitê, um grupo de combate à fome, que
não espera apenas por ações, faz. Com isso nossa rede de solidariedade se tornará cada vez maior.
Herbert de Souza, 60 anos, sociólogo, diretor-geral do IBASE,
articulador nacional da Ação da Cidadania contra a Miséria e Pela Vida.
Anúncio do livro: Deus Trabalha no Turno da Noite (JAN/1996)
Governador do Rio, Marcello Alencar, faz acusações aos responsáveis pelo maior projeto social do país
Por Carlos Fernandes
A passeata Reage Rio solidarizou-se com o drama vivido pela Fábrica de Esperança
Como se usasse uma boca com biqueira de metal, o governador do Estado do Rio,
Marcelo Alencar chutou sem piedade a Fábrica de Esperança, o megaprojeto social
da Vinde (Visão Nacional de Evangelização) e um dos símbolos do movimento Viva Rio,
contra a violência e pela recuperação econômica e social do Rio. A apreensão de
drogas numa área isolada da Fábrica, em Acari, no dia 23 de novembro, foi usada
pelo governador, como um pretexto para atacar duramente os responsáveis pelo
projeto social. Marcello lançou suspeitas sobre a idoneidade dos organizadores,
afirmando estar convicto de que o local serve de fachada para depósito e distribuição de drogas.
Irônico, chegou a chamar o projeto de "fábrica da desesperança".
A atitude do governador foi classificada dc "leviana, irresponsável e precipitada"
pelo reverendo Caio Fábio D' Araújo Filho, idealizador do projeto, que se revelou
perplexo com a reação de Marcelo Alencar. Em entrevista coletiva, no dia seguinte,
Caio mostrou-se triste e afirmou que sua intenção nunca foi a de "bater de frente"
com o governo do Estado. "O governador foi, no mínimo, precipitado, pois fez
declarações antes de as investigações estarem conduídas", disse o reverendo.
Ele desabafou, dizendo que o projeto é sério e lamentando que os traficantes
possam ter escondido "essas porcarias" dentro da Fábrica. Ele admite que, por estar
no meio de uma região perigosa ("aquilo é um barril de pólvora", afirmou), a Fábrica
de Esperança está exposta a todos os tipos de riscos, inclusive a ação das quadrilhas da região.
O fato de a apreensão ter ocorrido dias antes da passeata Reage Rio levou o sociólogo
Herbert de Souza, o Betinho, a imaginar que tudo pode ter sido "uma armação" com a
intenção de esvaziar o movimento.
Apoios - Ao contrário da imagem da santa que não pode reagir, a sociedade civil
respondeu prontamente às acusações do governador. Representantes de todos os segmentos
da sociedade - entre religiosos, sindicalistas, políticos e organizações não-governamentais -
deram apoio ao reverendo Caio Fábio e aos diretores da Fábrica de Esperança. manifestando
repúdio à intenção do governador de tentar vinculá-los ao tráfico de drogas.
Quatro dias depois dos dardos do governador, mais de quinhentas pessoas participaram
de ato público em apoio à Fábrica. O antropólogo Rubem César Fernandes, coordenador
do movimento Viva Rio e um dos organizadores da passeata, disse que Caio Fábio
"é um homem rigoroso e está acima de qualquer suspeita". A senadora Benedita da Silva
(PT-RJ), acusou Marcelo Alencar de investir no caos num momento em que a sociedade
se une para pedir mais segurança. Benedita considerou um absurdo suspeitar-se que
o reverendo Caio Fábio, pastor evangélico há 22 anos - reconhecido internacionalmente
como um sacerdote engajado em ações sociais - tenha qualquer envolvimento com o tráfico de drogas.
O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, presidente do Ibase e símbolo nacional da luta
contra a fome e a miséria, solidarizou-se com o trabalho desenvolvido pela Fábrica de Esperança,
considerando que ele é realizado "em condições excepcionais e em meio à mais profunda miséria".
O reverendo Caio Fábio começou a receber centenas de mensagens de apoio vindas de todo o país
e os jornais publicaram cenas de solidariedade ao seu trabalho e de repúdio às declarações do
governador. Numa delas. Marcelo afirmou que as organizações não-governamentais devem se livrar
de "aventureiros com capa de generosidade". Os parceiros da Fábrica demonstraram total
solidariedade e manifestaram claramente a intenção de manter seu apoio. Representantes da
Xerox do Brasil, Golden Cross e Curso Yázigi reafirmaram sua confiança nos responsáveis pela
Fábrica, e confirmaram que todos os convênios em andamento serão integralmente mantidos.
Viviane Senna, que estava no Japão, telefonou para informar que vai manter seus projetos.
Boa parte da opinião pública está convencida de que o governador teve a intenção de dar
o maior destaque possível ao caso, numa tentativa de enfraquecer a passeata Reage Rio que,
entre outras coisas, colocaria em xeque a política de segurança do Estado, num momento em
que se evidencia o recrudescimento da violência. Segundo estatísticas do Instituto Médico Legal - IML
-, o número de assassinatos no Estado do Rio, de janeiro a novembro, chegou a 4.269,
numa trágica média de 12 homicídios por dia. Até outubro, a Secretaria da Segurança Pública
contabilizou 88 sequestros, ao mesmo tempo em que cerca de 160 crianças estão desaparecidas.
Entre assaltos a bancos, roubos e furtos de carros e cargas, foram registrados mais de 33 mil,
deixando clara a ineficiência do governo do Estado do Rio no controle da violência.
Providências - O reverendo Caio Fábio anunciou providências imediatas, como um
levantamento completo sobre todos os funcionários da Fábrica, inclusive de seus antecedentes,
na tentativa de descobrir qualquer envolvimento ou eventual conivência de algum deles com as
atividades dos traficantes do complexo de favelas da região. Uma comissão de sindicância
interna foi instalada. Além disso, a segurança vai ser terceirizada e ampliada.
Até então, havia apenas 16 homens em três turnos, para vigiar uma área de 55 mil metros quadrados.
Lembrando que é "o maior interessado em que tudo seja esclarecido", Caio Fábio recorreu ao
Ministério Público para investigar minuciosamente o ocorrido. Com relação às acusações de
Marcelo Alencar, o reverendo explicou que esperará a conclusão das investigações para
decidir que providências tomará, mas a possibilidade de interpelar judicialmente o
governador não está afastada. "Uma coisa é certa: eu não vou agir da mesma forma precipitada
que o governador está agindo", afirmou. Caio Fábio estranhou ainda o fato de o governador
e o prefeito terem afirmado que já tinham suspeitas a respeito das atividades da Fábrica.
"Se era assim, por que eles não nos avisaram?"
Dizendo que sua função não é policialesca - "nós não perguntamos quem são os pais das crianças
e jovens que se beneficiam do nosso trabalho" o reverendo criticou o governador por não
controlar a entrada de drogas no Estado.
A ameaça de Marcelo Alencar, que dedarou que a Fábrica de Esperança poderia até ser fechada
em consequência do episódio, foi desaprezada pelo reverendo, que lembrou que o projeto não
é um órgão governamental e não pode ser desativada pela vontade do governador.
Ele reafirmou sua expectativa de que o movimento Reage Rio atingiria plenamente seus objetivos.
"Se alguém pensou que ia desmobilizar a manifestação, o tiro saiu pela culatra;
caminhamos unidos pela paz nas ruas", disse o pastor após participar do Reage Rio,
que parou a cidade no dia 28 de novembro.
Uma força de paz em território minado
Por Zuenir Ventura
Zuenir: apoio total à Fábrica
A experiência da Fábrica de Esperança é um projeto pioneiro.
E uma força de paz no "front" da guerra. Equivale àquelas operações da Cruz Vermelha,
no meio do fogo cruzado. Além de vidas, a Fábrica de Esperança também quer salvar almas.
Não quer apenas retirar as pessoas da linha de frente, mas dar a elas condições de viver
com o mínimo de dignidade. A fábrica combate o bom combate. Quer transformar futuros
soldados dessa guerra suja em grandes cidadãos. Eu digo isso com tranquilidade e total
isenção porque acompanhei o projeto da Fábrica desde o começo.
Devo ter sido um dos primeiros a descobrir que estava acontecendo ali em Acari,
numa das regiões mais áridas do Rio, uma história de esforços reais em favor da paz.
Sou testemunha também de que a Fábrica foi madrinha do belo casamento entre a economista
Clarice Pechman, fundadora do movimento Viva Rio, e Salo Seibel, do PNBE (Pensamento
Nacional das Bases Empresariais), um dos sócios da Formitec, que doou à antiga fábrica
ao pastor Caio Fábio. A Fábrica é o maior monumento à paz, à reconstrução da cidade,
que já foi feito. Não conheço no país outro projeto social com essas dimensões.
Mas a Fábrica não é apenas um marco simbólico do Viva Rio. Se fosse só simbólico,
já seria bom. Mas, melhor ainda, é uma ação concreta que supre a ausência do poder
público, numa área conflagrada.
Outro dado interessante nesse projeto é a participação
dos evangélicos, representados pelo pastor Caio Fábio. Antes de conhecer o trabalho dele,
na Fábrica, eu tinha uma visão maniqueísta sobre os evangélicos. Para mim, os movimentos
dirigidos por eles eram todos suspeitos. Ali tive uma grande revelação. Comecei a descobrir
o conteúdo social do projeto. Ao escrever Cidade Partida, me desfiz de muitos estereótipos
que são reproduzidos por nós mesmos da imprensa. Um deles era a participação dos evangélicos
em obras sociais. A Fábrica me revela o que é uma força de paz num território minado,
em pleno centro urbano do Rio de Janeiro.
Zuenir Ventura, 64 anos, é escritor e jornalista há 39 anos.
Colunista e editor especial do Jornal do Brasil, contou uma parte da história da Fábrica
de Esperança no livro Cidade Partida, da Companhia das Letras.