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sexta-feira, 1 de março de 1996

A graça de ouvir

Por Reverendo Ricardo Barbosa de Souza

Ilustração: Renato Ratencourt/Anware

"As palavras dos sábios, ouvidas em silêncio, valem mais do que os gritos de quem governa os tolos"
(Eclesiastes 9.17)

Recentemente, lendo um livro, deparei-me com uma afirmação que levou-me a parar e refletir. Dizia assim: "Quando o homem ouve, Deus fala. Quando o homem obedece, Deus age... Não somos nós que falamos a Deus, é Deus quem fala a nós. A lição mais importante que o mundo necessita é a arte de ouvir Deus." O silêncio é uma das virtudes cristãs que perdeu seu significado na cultura evangélica contemporânea.

Falar sobre silêncio e contemplação para nossa sociedade moderna parece um contra-senso. Hoje, o que define a espiritualidade de um cristão é a agenda repleta de compromissos que o ocupem o dia todo com reuniões, trabalhos evangelísticos, pregações, visitas etc. As igrejas não desejam como líder um pastor que passe algumas horas do dia recolhido em silêncio e oração. Quase sempre procuram alguém dinâmico, cheio de novas idéias, sempre pronto a mobilizar a igreja para grandes empreendimentos e que não desperdice seu tempo com atividades não produtivas. Nossos cultos e nossa vida religiosa precisam ser preenchidos de forma a não deixar espaços vazios, pois o silêncio para o homem moderno atua como uma presença inoportuna que insiste em denunciar nossos fracassos. Não há nada mais constrangedor num culto ou reunião de oração do que os espaços vazios entre uma oração e outra. Se estes espaços não são preenchidos rapidamente por orações ou cânticos, serão por gritos de aleluia. Richard J. Foster diz que "na sociedade contemporânea, nosso adversário se especializa em três coisas: ruído, pressa e multidões. Se ele puder manter-nos ocupados com a grandeza e a quantidade, descansará sara satisfeito". A televisão, o rádio, o toca-fitas transformaram-se nos amigos dos homens solitários. Necessitamos de algum ruído, de movimento, de grandes projetos para nos sentirmos vivos.

"O caminho de volta para o coração, de encontro com a alma, só pode ser trilhado através do silêncio e da contemplação. Ouvir o veredicto de Deus o nosso respeito exige o silenciar de outras vozes para ouvir apenas Sua voz."

Um dos testemunhos mais antigos sobre o lugar e importância do silêncio na vida cristã vem dos escritos de Inácio de Antioquia, um contemporâneo do Novo Testamento. Ele dizia que é melhor permanecer quieto e ser, do que ter fluência e não ser. Para ele, os três maiores eventos na história da salvação = o nascimento virginal, a encarnação e a morte de Cristo - deram-se num profundo silêncio de Deus. Os escritos dos Pais do Deserto do quarto e quinto séculos estão repletos de admoestações sobre o valor do silêncio. "Deus é silêncio", dizia João, o Solitário, monge sírio do século quinto. Durante toda a vida da Igreja, o silêncio sempre ocupou um lugar fundamental na espiritualidade cristã. Tomás Kempis escreveu: "No silêncio e na quietude, a alma devota faz progressos e aprende os mistérios escondidos nas Escrituras."

O silêncio para os Pais do Deserto não significa apenas o não falar, mas também uma postura diante de Deus e de nós mesmos. É um silêncio que nos habilita a ouvir, meditar e contemplar as obras e mistérios de Deus. Eles diziam: "Um homem pode parecer silencioso, mas, se em seu coração, está condenando os outros, está falando sem cessar." Na meditação esotérica, o silêncio é uma tentativa de esvaziar a mente, enquanto que o silêncio na contemplação cristã é uma tentativa de esvaziar a mente dos pensamentos humanos e enchê-la com os pensamentos de Qeus. "O silêncio é muito mais do que a ausência da fala. Essencialmente, silêncio é ouvir." O Salmo afirma: "Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus" (Salmos 46.10a). O profeta também fala: "O Senhor, porém, está no seu santo templo; cale-se diante dele toda a terra" (Habacuque 2.20). O silêncio e a contemplação na tradição cristã são a postura que assumimos diante de Deus para ouvir-lhe a voz. Os cristãos ortodoxos entenderam melhor esta necessidade do coração e da alma e desenvolveram, ao longo da história, uma forte tradição contemplativa. Para eles, a oração é muito mais uma questão de ouvir do que de falar. Ao invés de apresentar a Deus a lista de supermercado com súplicas e gratidão, eles procuram aguardar em silêncio para ouvir o que Deus tem a dizer e então respondem em oração. Para eles, o grande exemplo de oração na Bíblia é Maria, mãe de Jesus, que apenas respondeu: "Eis aqui a serva do Senhor, que se cumpra em mim segundo a Sua vontade" (Lucas 1.38). Oração é a nossa resposta à proposta e chamado de Deus. A primeira palavra é sempre de Deus, a nós cabe a resposta.

O apóstolo Paulo afirma que somos o templo do Espírito Santo, o lugar da sua morada. Ele está em nós e vive em nós. Por que, então, será que muitos cristãos hoje não gozam da vida do Espírito? Será que é apenas pelo fato de que ainda não o experimentaram plenamente? Pode ser. Mas imagino que a grande dificuldade que muitos cristãos hoje enfrentam na sua vida espiritual não é a necessidade de mais experiências, mas de se voltarem para dentro da alma e do coração para, de fato, conhecerem o Deus que habita ali. Teresa de Ávila dizia: "Aquieta-te em silêncio e encontrarás o Senhor em ti mesmo." Só não ouvimos a voz de Deus porque estamos por demais inquietos e com o coração cheio de muitas vozes.

Para João da Cruz, o silêncio leva-nos a uma crise purificadora. No seu livro A noite escura, onde descreve seu deserto pessoal, afirma que o sofrimento liberta-nos da dependência dos resultados exteriores. Tornamos nos cada vez menos impressionados com a religião dos grandes acontecimentos, dos templos, dinheiro, milagres etc. para nos preocuparmos com aquilo que de fato necessitamos.

Este caminho de volta para o coração, de encontro com a alma, só pode ser trilhado através do silêncio e da contemplação. Ouvir o veredicto que Deus tem a nosso respeito exige o silenciar de outras vozes e ruídos para ouvir apenas a voz de Deus. A prática do silêncio é evitada porque é através dela que os fantasmas da alma, medos e angústias que vivem nos esconderijos do coração, surgem com todo seu poder e terror. Mas é através do silêncio que encontramos o poder de Deus, que faz sucumbir os fantasmas e os medos e renova em nós a alegria da paz e comunhão íntima com o Senhor. Para João Cassiano (385-435), a libertação dos impulsos frenéticos que freqüentemente nascem das nossas inquietações interiores é que nos conduz a uma verdadeira e livre comunhão com Deus e os homens.


Ricardo Barbosa de Souza é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília (DF).


Extraído: História. Revista Vinde, Rio de Janeiro, ano 1996, a. 1, ed. 5, p. 52 e 53, mar. 1996.

terça-feira, 13 de fevereiro de 1996

A oração no pensamento de Walter Hilton

Por Reverendo Ricardo Barbosa de Souza

Carlos Fernandes

WALTER HILTON nasceu na terceira década do século 14, provavelmente em Yorkshire, Inglaterra, e morreu em 14 de março de 1396. Foi contemporâneo de João Wycliffe, o grande tradutor bíblico. Enquanto Wycliffe tornava-se um teólogo envolvido com questões de natureza política e civil, Hilton desenvolvia seu ministério, a princípio como leigo, ajudando grupos pequenos de pessoas. Não há nenhum indício de que tenha assumido alguma posição de destaque ou algum ministério mais público. Sua vida é praticamente desconhecida, a não ser pelos escritos e cartas que deixou, instruindo e orientando seus discípulos. Ele foi, como Evelyn Underhill apresenta, "uma destas figuras escondidas, destes amigos quietos e secretos de Deus, que nunca falharam com sua igreja".

Embora ele nunca tenha sido pastor de uma igreja local, todos os seus escritos têm um caráter pastoral e psicológico. O conteúdo dos seus escritos são bíblicos, cheios de sabedoria pastoral, penetrando nas questões mais profundas e secretas da alma humana. Um dos assuntos que marcam o pensamento de Walter Hilton é o da relação pessoal e íntima do homem com Deus. A oração, neste contexto, ocupa um espaço significativo nos seus escritos e cartas.

"Portanto, é verdade que a oração não é a causa da graça que o Senhor nos oferece, mas um canal através do qual a graça livremente flui para dentro da alma."

Para Hilton, a oração é, sobretudo, um caminho para a transformação da vida e compreensão da graça de Deus. Ele reage ao conceito mais comum da oração como sendo um instrumento de tornar conhecidas nossas necessidades diante de Deus. Ele afirma: "Oração é o meio mais proveitoso de se obter a pureza de coração, a erradicação do pecado e a receptividade das virtudes. Não devemos imaginar que o propósito da oração seja o de dizer a Deus o que precisamos, porque ele sabe muito bem quais são as nossas necessidades. Pelo contrário, o propósito da oração é o de nos tornar prontos e aptos para receber, como vasos limpos, a graça que nosso Senhor livremente nos dá".

Ele deixa claro que a pureza do coração não é uma condição para a graça de Deus, mas que o coração humano só experimenta de fato a graça quando é transformado e purificado pela experiência da oração. "Portanto, é verdade que a oração não é a causa da graça que o Senhor nos oferece, mas um canal através do qual a graça livremente flui para dentro da alma." A oração para Hilton é, em última análise, um encontro com a graça transformadora e perdoadora de Deus.

Diante disso, ele sugere que a oração não deve ser determinada pelos desejos momentâneos e circunstanciais do mundo. Pelo contrário, todo esforço deve ser orientado para que a nossa mente se desligue das coisas terrenas e perceba aquelas que são eternas. Isto não significa que a experiência da oração deva ser desconectada das realidades da vida, mas que seu foco não deve ser nós mesmos, nem as necessidades que o mundo nos impõe, mas Deus, Sua vontade e Seu reino.

Para Walter Hilton, o cristão deve procurar conhecer os desejos de sua alma para, a partir deles, definir a agenda de sua vida e da oração. Para ele, os desejos espirituais são definidos como "uma rejeição aos prazeres mundanos e carnais que residem no coração e um completo desejo pela alegria celeste e a eterna bênção da presença de Deus". Uma vez tendo estes desejos sinceramente definidos no coração, todo o nosso trabalho e toda a nossa oração devem começar e terminar neles. É neste sentido que o apóstolo Paulo fala em "buscar as coisas lá do alto" e "pensar nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra". Segundo o apóstolo, é lá que se encontra nossa vida em Cristo. É esta "vida oculta juntamente com Cristo" que devemos buscar no ato da oração. Desligar-se das coisas terrenas e mundanas e ligar-se nas eternas e celestes significa optar por aquilo que é próprio de Deus e colocar nele nossas paixões e desejos.

Infelizmente, para muitos cristãos modernos, a oração transformou-se num instrumento de conquistas, de demonstração de poder, de definir, a partir das realidades mundanas e circunstanciais da existência humana, a agenda da nossa súplica. É difícil mudar este hábito. Preferimos receber as dádivas materiais como sendo as bênçãos de Deus do que termos nossas mentes e corações transformados em Cristo. Os nossos desejos são determinados muito mais pela propaganda e pelas nossas carências do que por Deus e a esperança da comunhão eterna com ele. É aqui que Hilton contribui para com a igreja moderna. É preciso olhar mais uma vez para dentro e reconhecer quais são os desejos que nos consomem. Eles irão determinar a pauta e o significado de nossas orações.

Como afirma Walter Hilton, o propósito da oração é o de obter a pureza de coração, a erradicação do pecado e a receptividade das virtudes. Em outras palavras, oramos para alcançar a santidade na medida em que Deus converte nossos caminhos e pensamentos aos seus caminhos e pensamentos. É através da oração que somos confrontados com o nosso próprio pecado e transformados pela graça de Deus. James Houston afirma que "muitos cristãos não oram porque não querem ser transformados". Por último, a oração torna o nosso coração receptivo à compreensão e à vivência das virtudes cristãs. Humildade, obediência, amor e perdão são algumas das virtudes que só podem ser compreendidas e vividas num ambiente marcado pela oração. Num contexto de extrema competitividade e busca por realização a partir das conquistas materiais, Hilton traz uma enorme contribuição ao resgate da oração como instrumento de crucificação, amizade e santificação. Sem dúvida, o que mais necessitamos hoje é resgatar no caráter do cristão a busca por santidade, a luta contra o pecado e a manifestação do fruto do Espírito.


O reverendo Ricardo Barbosa de Souza é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília (DF).

sexta-feira, 5 de janeiro de 1996

Há poder de cura na confissão

Por Reverendo Ricardo Barbosa de Souza

TIAGO, em sua carta, afirma: "Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros, para serdes curados". A confissão, quando feita em secreto, no quarto, longe das pessoas, é uma prática que acompanha a vida de muitos cristãos. No entanto, estender esta prática secreta ao mundo público, torná-la conhecida dos outros, é uma realidade bem diferente, incomum na experiência cristã. Agostinho (354-430), bispo de Hipona, foi educado num contexto cristão, mas resistiu ao chamado de Cristo e ao envolvimento numa vida de fé por muitos anos. Sua mãe, Mônica, sempre orou pela conversão do filho que, numa visita a Ambrósio, em Milão, converteu-se e foi batizado no ano de 387. Tornou-se então sacerdote e depois bispo de Hipona. Entre suas obras, uma que tornou-se conhecida e teve grande influência sobre a espiritualidade cristã foi As Confissões.

"Crescer na experiência da caridade é crescer em direção a imagem de Deus e tornar-se mais unido a ele."

Para Agostinho, confessar é desnudar a alma e o coração diante de Deus, de nós mesmos e dos outros. É através deste ato que o homem passa a conhecer-se a si mesmo. "Eis que amaste a verdade, porque aquele que a pratica vem à luz. Com essa confissão em meus escritos, quero praticar a verdade no meu coração diante de Deus e diante de tantas testemunhas." Para ele, praticar a verdade é tornar claro quem ele é. Agostinho sabia que é possível ao homem enganar-se a si mesmo e construir uma imagem falsa perante o próximo, mas diante de Deus é impossível que o homem esconda sua verdadeira face. "Diante de Deus, está sempre a descoberto o abismo da consciência humana. Que poderia haver de oculto em mim para Deus, por mais que eu não quisesse dizer a verdade? Conseguiria apenas ocultar Deus aos meus olhos, mas não poderia ocultar-me dos seus". Somente Deus conhece a verdade do coração do homem e pode revelá-la. Confessar é permitir que a verdade sobre nós mesmos seja revelada.

Tiago propõe que a confissão seja uma experiência pública, feita não apenas em secreto diante de Deus, mas também "uns aos outros" para sermos curados. Este é o lado mais difícil e complexo da confissão. Agostinho também enfrentou este dilema. Ele pergunta: "Mas, para que tenho de confessar-me diante dos homens, como se fossem eles que me perdoassem os pecados? Os homens estão sempre dispostos a bisbilhotar e a averiguar as vidas alheias, mas têm preguiça de conhecer-se a si próprios e de corrigir a sua própria vida. Por que querem ouvir-me dizer quem sou, eles que não querem que Deus lhes diga quem e como são?" Por que devemos nos expor aos outros? Tornar nossa vida privada, pública? Revelar segredos íntimos e pessoais? Que bem isto poderia trazer aos homens? A resposta que Agostinho dá a estas perguntas é bastante simples. Para ele, a razão de suas confissões perante os homens não nasce do desejo ingênuo de, simplesmente, revelar seus segredos àquelas pessoas ávidas por bisbilhotar a vida alheia, mas sim, do seu desejo de que as pessoas compartilhem com ele a natureza da graça e do perdão de Deus por ele experimentados. "A confissão que fiz dos meus pecados anteriores à conversão... moveu os corações, quando foi lida e ouvida; assim foi, para que ninguém adormecesse no desalento e dissesse: 'Não posso', antes despertasse para o amor e a felicidade, para a misericórdia e para a graça de Deus, que torna forte todo aquele que antes era fraco".

Há outra razão pela qual Agostinho deseja tornar sua confissão pública. Ele quer dar a conhecer aquilo que Deus, por sua graça fez por ele, e as transformações que a bondade de Deus realizou em sua vida. A confissão é o caminho que nos leva à experiência da transformação do caráter e do coração. "Dar-me-ei a conhecer porque não é pequeno o fruto que pode produzir: que sejam muitos os que dêem graças a Deus por mim e que orem por mim; desejo que aqueles que me leiam se sintam movidos a amar o que Deus ensina, e a sentir dor do que lhes deve causar dor... O fruto que agora desejo tirar das minhas confissões não se refere, pois, ao que fui, mas ao que sou hoje. Desejo dá-lo a conhecer não só diante de Deus, mas diante dos homens, dos meus concidadãos, que caminham comigo." A confissão, segundo Agostinho, é essencialmente um encontro transformador do nosso próprio caráter, que promove a transformação daqueles que conosco caminham o caminho da fé.

Agostinho procura nas suas confissões apresentar não apenas fatos ocorridos em sua vida, mas, sobretudo, aquilo que ele é. Para ele, o pecado não é apenas um acidente isolado, mas a realidade da própria existência humana. Sua confissão não revela somente seus erros, mas sua natureza, seu caráter. Ele fala da tentação da carne em sonhos, da gula, da atração dos perfumes, dos olhos, da curiosidade, do orgulho, da vaidade e do amor próprio, procurando fazer de Deus um espelho de sua própria alma. Ao contemplar a Deus em sua luz e verdade, contemplamos nosso próprio coração. "Deus é luz que não se extingue; aquela que eu consultava sobre todas as coisas." Confessar é conhecer a realidade mais íntima do nosso ser, e isso só nos é possível diante daquele que nos conhece completamente, aceita e ama. Deus não é apenas luz que ilumina nosso interior, mas também é a verdade que desmascara a mentira e a ilusão. "Deus é a verdade que está sobre todas as coisas. Mas eu não queria perdê-la e, ao mesmo tempo, na minha avareza, queria possuir também a mentira; como o mentiroso que não quer mentir muito para não perder a noção da verdade. Foi assim que perdi a Deus, porque Ele não quer ser possuído juntamente com a mentira." Na comunhão com a luz e a verdade, Deus revela não apenas o que faço, mas também quem sou no íntimo da minha alma.

Para Agostinho, o conhecimento de Deus, bem como a transformação do caráter humano, obtidos pela experiência da confissão, nos levam ao encontro e à comunhão com Deus e o próximo, que é a razão da vida e a causa primeira do propósito do Criador. "Fizeste-nos para ti e o nosso coração está inquieto enquanto não descansar em ti."

(As citações foram extraídas do livro As Confissões, de Santo Agostinho. Ed. Quadrante, São Paulo, 1989)

Reverendo Ricardo Barbosa de Souza é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília (DF).

sexta-feira, 1 de dezembro de 1995

A Trindade e o amor na teologia de Ricardo de São Victor

Por Ricardo Barbosa de Souza

Carlos Fernandes

Trindade, embora ocupe lugar de estaque e importância na doutrina cristã, encontra pouca ou quase nenhuma relevância para a experiência cristã. Para a grande maioria dos cristãos, a Trindade não tem praticamente nada a dizer sobre o dia-a-dia da vida. Na verdade, ela só interessa aos teólogos e filósofos que se deliciam com a especulação de temas absolutamente irrelevantes para o cotidiano da experiência humana. No entanto, a Trindade revela não apenas a natureza do Deus cristão, mas também seu caráter. A partir da Trindade é que podemos concluir que o Deus que a Bíblia revela é, essencialmente, um Deus relacional. Ao revelar-se como Pai, Filho e Espírito Santo, Deus mostra não apenas suas ações na história da salvação do homem como também revela sua natureza afetiva, fraterna e relacional. Deus é uma amizade eterna, onde o Pai, o Filho e o Espírito Santo gozam da mais intensa e perfeita comunhão de amor e reciprocidade.

Um dos pensadores da história da igreja, que refletiu e trouxe uma grande contribuição ao desenvolvimento do aspecto relacional da Trindade, foi Ricardo de São Victor (? -1173). Ele explorou o amor humano através de uma análise psicológica das relações interpessoais e conduiu que a pessoa é mais humana e mais próxima de Deus quando transcende a si mesma em amor por outra pessoa. Fundamentalmente, para ele, a experiência humana de amor tem suas raízes no mistério da Trindade. Para Ricardo, não há nada mais perfeito do que a caridade (caridade como expressão concreta de amor para com o próximo). Portanto, se Deus possui a plenitude de tudo que é bom e perfeito, ele possui a plenitude da caridade. Se Deus é a perfeição do amor, o homem, sendo criado conforme a imagem de Deus, deve refletir esta perfeição ao máximo possível. Crescer na experiência do amor e da caridade é crescer em direção à imagem de Deus e tornar-se mais unido a ele. É baseado nesta experiência de amor compartilhado que Ricardo conclui que não pode haver uma só pessoa em Deus, pois o exercício do amor exige mais do que uma pessoa. Onde existe apenas uma pessoa, não existe caridade. Daí, sua conclusão lógica de que, se Deus é amor, não pode existir solitariamente, não pode ser um Deus uno.

Ricardo reconhece a necessidade de haver mais do que uma pessoa em Deus. Para ele, um Deus que não tem alguém com igual dignidade com quem possa compartilhar plenamente seu amor não pode ser um Deus plenamente realizado. Ele se expressa assim: "Temos aprendido que, naquele supremo e totalmente perfeito bem, existe a plenitude e a perfeição de toda a bondade. No entanto, onde existe a plenitude de toda a bondade, não pode faltar a caridade. Porque nada é melhor do que a caridade. No entanto, ninguém pode dizer que tem caridade baseado apenas no amor que tem para consigo. Torna-se necessário que o amor seja direcionado para uma outra pessoa para que seja caridade. Por isso, onde não existe a pluralidade de pessoas não pode existir a caridade. Mas você pode dizer que, mesmo que houvesse uma só pessoa na Divindade, ainda assim ele teria caridade para com a sua criação. De fato, o Senhor tem. Mas certamente ele não poderia expressar a caridade suprema para com a pessoa criada porque, se Ele amasse supremamenre alguém que não pudesse ser supremamente amado, a caridade seria imperfeita".

"Crescer na experiência da caridade e crescer em direção à imagem de Deus e tornar-se mais unido a ele."

Para Ricardo de São Victor, Deus é amor porque subsiste numa pluralidade de pessoas. Mesmo antes que houvesse mundo criado, Deus já existia como um Deus de amor. As relações de amizade e reciprocidade existem desde toda a eternidade em Deus. Ao nos criar segundo sua imagem e semelhança, Deus nos cria para amar e ser amados. Ele afirma que, a partir da Trindade, "não há nada mais glorioso, nada mais magnificente, do que desejar não ter nada que não possa ser compartilhado". Para ele, o significado da pessoa humana só pode ser compreendido a partir das relações de amizade e amor que construímos.

Aqui já podemos perceber a relevância deste tema para a vida. Para o homem moderno, o significado de ser pessoa, de ser alguém, está intimamente relacionado com as realizações profissionais e suas conquistas sociais. O homem é o que é por causa daquilo que possui. Se não possuirmos aquilo que a sociedade reconhece como essencial para a vida, não somos ninguém. No pensamento de Ricardo de São Victor, baseado na natureza trinitária de Deus, o homem encontra sua identidade pessoal nas relações de amizade e amor que constrói com Deus e seu semelhante. Jesus, ao definir qual é o maior de todos os mandamentos, disse que é "amar a Deus de todo o coração e alma, e ao próximo como a si mesmo". A natureza fundamental da experiência espiritual cristã é a amizade que nasce do encontro com o Deus de amor.

A Trindade nos livra do egoísmo e da vida autocentrada para uma experiência de amizade e amor com Deus e o próximo. E, a partir dela, nos encontramos como pessoas, não nas conquistas profissionais e sociais, mas nas relações de afeto e comunhão. O grande desafio da espiritualidade cristã é o de encontrar na Trindade os Fundamentos para nossa experiência de amor e amizade.

Gostaria de terminar citando C. S. Lewis: "Não existe investimento seguro. Amar é ser vulnerável. Ame qualquer coisa e seu coração irá certamente ser espremido e, possivelmente, partido. Se quiser ter a ceteza de mantê-lo intato, não deve dá-lo a ninguém, nem mesmo a um animal. Evite todos os envolvimentos, feche-o com segurança no esquife ou no caixão do seu egoísmo. Mas nesse esquife - seguro, sombrio, imóvel, sufocante - ele irá mudar. Não será quebrado, mas se tornará inquebrável, impenetrável, irredimível. O único lugar fora do céu onde você pode manter-se perfeitamente seguro contra todos os perigos e perturbações do amor é o inferno".


Ricardo Barbosa de Souza é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília (DF).

Revista Vinde - Edição 3

--- Reage Fábrica Pastor Jimmy Swaggart Epistolas do Leitor Eles não gostam de oposição Os "ro...