sexta-feira, 1 de março de 1996

A graça de ouvir

Por Reverendo Ricardo Barbosa de Souza

Ilustração: Renato Ratencourt/Anware

"As palavras dos sábios, ouvidas em silêncio, valem mais do que os gritos de quem governa os tolos"
(Eclesiastes 9.17)

Recentemente, lendo um livro, deparei-me com uma afirmação que levou-me a parar e refletir. Dizia assim: "Quando o homem ouve, Deus fala. Quando o homem obedece, Deus age... Não somos nós que falamos a Deus, é Deus quem fala a nós. A lição mais importante que o mundo necessita é a arte de ouvir Deus." O silêncio é uma das virtudes cristãs que perdeu seu significado na cultura evangélica contemporânea.

Falar sobre silêncio e contemplação para nossa sociedade moderna parece um contra-senso. Hoje, o que define a espiritualidade de um cristão é a agenda repleta de compromissos que o ocupem o dia todo com reuniões, trabalhos evangelísticos, pregações, visitas etc. As igrejas não desejam como líder um pastor que passe algumas horas do dia recolhido em silêncio e oração. Quase sempre procuram alguém dinâmico, cheio de novas idéias, sempre pronto a mobilizar a igreja para grandes empreendimentos e que não desperdice seu tempo com atividades não produtivas. Nossos cultos e nossa vida religiosa precisam ser preenchidos de forma a não deixar espaços vazios, pois o silêncio para o homem moderno atua como uma presença inoportuna que insiste em denunciar nossos fracassos. Não há nada mais constrangedor num culto ou reunião de oração do que os espaços vazios entre uma oração e outra. Se estes espaços não são preenchidos rapidamente por orações ou cânticos, serão por gritos de aleluia. Richard J. Foster diz que "na sociedade contemporânea, nosso adversário se especializa em três coisas: ruído, pressa e multidões. Se ele puder manter-nos ocupados com a grandeza e a quantidade, descansará sara satisfeito". A televisão, o rádio, o toca-fitas transformaram-se nos amigos dos homens solitários. Necessitamos de algum ruído, de movimento, de grandes projetos para nos sentirmos vivos.

"O caminho de volta para o coração, de encontro com a alma, só pode ser trilhado através do silêncio e da contemplação. Ouvir o veredicto de Deus o nosso respeito exige o silenciar de outras vozes para ouvir apenas Sua voz."

Um dos testemunhos mais antigos sobre o lugar e importância do silêncio na vida cristã vem dos escritos de Inácio de Antioquia, um contemporâneo do Novo Testamento. Ele dizia que é melhor permanecer quieto e ser, do que ter fluência e não ser. Para ele, os três maiores eventos na história da salvação = o nascimento virginal, a encarnação e a morte de Cristo - deram-se num profundo silêncio de Deus. Os escritos dos Pais do Deserto do quarto e quinto séculos estão repletos de admoestações sobre o valor do silêncio. "Deus é silêncio", dizia João, o Solitário, monge sírio do século quinto. Durante toda a vida da Igreja, o silêncio sempre ocupou um lugar fundamental na espiritualidade cristã. Tomás Kempis escreveu: "No silêncio e na quietude, a alma devota faz progressos e aprende os mistérios escondidos nas Escrituras."

O silêncio para os Pais do Deserto não significa apenas o não falar, mas também uma postura diante de Deus e de nós mesmos. É um silêncio que nos habilita a ouvir, meditar e contemplar as obras e mistérios de Deus. Eles diziam: "Um homem pode parecer silencioso, mas, se em seu coração, está condenando os outros, está falando sem cessar." Na meditação esotérica, o silêncio é uma tentativa de esvaziar a mente, enquanto que o silêncio na contemplação cristã é uma tentativa de esvaziar a mente dos pensamentos humanos e enchê-la com os pensamentos de Qeus. "O silêncio é muito mais do que a ausência da fala. Essencialmente, silêncio é ouvir." O Salmo afirma: "Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus" (Salmos 46.10a). O profeta também fala: "O Senhor, porém, está no seu santo templo; cale-se diante dele toda a terra" (Habacuque 2.20). O silêncio e a contemplação na tradição cristã são a postura que assumimos diante de Deus para ouvir-lhe a voz. Os cristãos ortodoxos entenderam melhor esta necessidade do coração e da alma e desenvolveram, ao longo da história, uma forte tradição contemplativa. Para eles, a oração é muito mais uma questão de ouvir do que de falar. Ao invés de apresentar a Deus a lista de supermercado com súplicas e gratidão, eles procuram aguardar em silêncio para ouvir o que Deus tem a dizer e então respondem em oração. Para eles, o grande exemplo de oração na Bíblia é Maria, mãe de Jesus, que apenas respondeu: "Eis aqui a serva do Senhor, que se cumpra em mim segundo a Sua vontade" (Lucas 1.38). Oração é a nossa resposta à proposta e chamado de Deus. A primeira palavra é sempre de Deus, a nós cabe a resposta.

O apóstolo Paulo afirma que somos o templo do Espírito Santo, o lugar da sua morada. Ele está em nós e vive em nós. Por que, então, será que muitos cristãos hoje não gozam da vida do Espírito? Será que é apenas pelo fato de que ainda não o experimentaram plenamente? Pode ser. Mas imagino que a grande dificuldade que muitos cristãos hoje enfrentam na sua vida espiritual não é a necessidade de mais experiências, mas de se voltarem para dentro da alma e do coração para, de fato, conhecerem o Deus que habita ali. Teresa de Ávila dizia: "Aquieta-te em silêncio e encontrarás o Senhor em ti mesmo." Só não ouvimos a voz de Deus porque estamos por demais inquietos e com o coração cheio de muitas vozes.

Para João da Cruz, o silêncio leva-nos a uma crise purificadora. No seu livro A noite escura, onde descreve seu deserto pessoal, afirma que o sofrimento liberta-nos da dependência dos resultados exteriores. Tornamos nos cada vez menos impressionados com a religião dos grandes acontecimentos, dos templos, dinheiro, milagres etc. para nos preocuparmos com aquilo que de fato necessitamos.

Este caminho de volta para o coração, de encontro com a alma, só pode ser trilhado através do silêncio e da contemplação. Ouvir o veredicto que Deus tem a nosso respeito exige o silenciar de outras vozes e ruídos para ouvir apenas a voz de Deus. A prática do silêncio é evitada porque é através dela que os fantasmas da alma, medos e angústias que vivem nos esconderijos do coração, surgem com todo seu poder e terror. Mas é através do silêncio que encontramos o poder de Deus, que faz sucumbir os fantasmas e os medos e renova em nós a alegria da paz e comunhão íntima com o Senhor. Para João Cassiano (385-435), a libertação dos impulsos frenéticos que freqüentemente nascem das nossas inquietações interiores é que nos conduz a uma verdadeira e livre comunhão com Deus e os homens.


Ricardo Barbosa de Souza é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília (DF).


Extraído: História. Revista Vinde, Rio de Janeiro, ano 1996, a. 1, ed. 5, p. 52 e 53, mar. 1996.

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