sábado, 6 de abril de 1996

Os evangélicos e o mito da democracia racial

A senadora do Rio denuncia que existe racismo nas igrejas

Jorge Antonio Barros

Fotos de Frederico Mendes

Carlos Fernandes
A senadora Benedita garante que não vai se candidatar à prefeitura do Rio de Janeiro

Quando surgiu no cenário político carioca uma vereadora negra, favelada, petista e evangélica, ninguém jamais imaginou que aquela mulher pudesse ir tão longe. Uma década depois, ela ocupa uma cadeira no Senado da República, exatamente com o mesmo perfil que a lançou nas urnas do Rio. As únicas diferenças entre a vereadora Bené e a senadora Benedita da Silva - 54 anos completados no dia 11 de março - talvez sejam o crescente acúmulo de votos (para o Senado conquistou dois milhões de eleitores), a bagagem conquistada com a experiência política e o conhecimento do mundo em viagens que a levaram, por exemplo, à Conferência de Pequim, onde foi discutida, no ano passado, a situação da mulher no mundo. "Nós, mulheres brasileiras, avançamos, mas ainda estamos aquém", lamenta a senadora, dois filhos, quatro netos e dois enteados - entre eles a atriz Camila Pitanga - filhos do ator e vereador Antônio Pitanga, com quem se casou há dois anos. Eles vivem numa casa confortável no morro Chapéu Mangueira, favela na Zona Sul do Rio. Pitanga não é evangélico, mas costuma acompanhar a mulher, nos cultos da Assembléia de Deus no Leblon, embora Benedita agora seja membro da Igreja Presbiterana Betânia, em Niterói - a mesma do reverendo Caio Fábio. Avessa à política neoliberal do governo Fernando Henrique, a senadora critica também o governador do Rio, Marcelo Alencar, e o prefeito da cidade, César Maia.

Em entrevista à VINDE, Benedita reclama da falta de espaço para a mulher, dentro e fora da igreja, explica que a postura do PT não influencia seus princípios cristãos e é dura nas denúncias de racismo e machismo nas igrejas evangélicas. "Você já viu missionário negro estrangeiro pregando no Maracanã, indaga a senadora, que não vai se candidatar à prefeitura do Rio. "É uma etapa superada".

Como ocorreu sua conversão e quem pregou o Evangelho à senhora?

Os crentes visitavam minha casa, mas eu era uma católica convicta, da Legião de Maria. Mesmo assim, havia em mim um vazio que eu não entendia. Na minha casa havia uma Bíblia, e nela estava escrito: "Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará." Este versículo criou em mim uma ansiedade para encontrar esta Verdade. Até que, um dia, fui à Assembléia de Deus de São Cristóvão. O pastor perguntou quem queria aceitar Jesus e levantei a mão. Quando contei para meu marido, ele riu. Parei de fumar e dei minhas roupas decotadas e imagens de santos. Peguei um vestido de manga, que era forro do travesseiro, e passei a usar. Era a única roupa que eu tinha para ir à igreja.

A senhora também diz que o Evangelho deu mais dignidade à sua vida. Como foi isso?

Eu levava uma vida de miséria e vergonha. Eu era revoltada e sectária, tinha vontade de pegar uma bomba e sair destruindo as autoridades que nos abandonam. O encontro com Jesus me mostrou meu valor. Comecei a me sentir inteligente, bem por dentro. Passei a compreender tudo o que me cercava. Pude enfrentar as adversidades sociais sem me abater. Prossegui com o trabalho comunitário, mas aí era diferente. Minha forma de disputa política passou a ser mais humana. Compreendi que o diálogo é o único meio de convencimento. Fora disso, é sectarismo.

Como a senhora chegou à decisão de se candidatar pela primeira vez, sendo membro da Assembléia de Deus e do Partido dos Trabalhadores?

Foi com a visão de que as mulheres eram importantes para a vida social, política e religiosa, mas não tinham uma oportunidade. Eu sentia esta dificuldade nas disputas de associações de moradores e, posteriormente, no próprio partido. Na época, eu era do MDB. Algumas mulheres se destacavam porque eram de classe média, intelectuais, mas não tinham poder. Fundamos o PT com a compreensão de que este era o partido em que as mulheres, os pobres e os trabalhadores teriam voz e vez.

E como se deu esse processo de compatibilização entre cristianismo e socialismo?

Confesso que não houve compatibilização. Pelo contrário, foi um choque. Acho que fui a primeira mulher que saiu candidata dentro da Assembléia de Deus. Nunca usei o púlpito para fazer pregação política. Tinha meu testemunho de vida, mas achavam que eu deveria sair da militância, que isso não era coisa de crente. Decidi ficar no partido, mas sem me envolver muito. Fui amadurecendo com o tempo. Passei a ter mais discernimento e entender que Deus deu tarefas para o ser humano. Não precisava me sentir culpada por realizar este trabalho político. A Palavra de Deus diz que aqui teríamos aflições, mas Jesus venceu o mundo. Vencer aqui é não abrir mão da convicção religiosa e a cada dia estar como sal e luz no meio da massa, trabalhando. Eu sabia o que era fome, prostituição, marginalidade. Não podia passar por cima. Não era para me assentar na roda dos escarnecedores, mas dos que estavam com fome e não tinham o que comer, estavam nus e não tinham o que vestir, estavam presos e não havia quem os visitasse.

Esta visão mais progressista das Escrituras não a ajudou dentro da igreja?

Para a igreja, estas coisas são colocadas na área do assistencialismo, do sentir pena, por exemplo, de um homossexual porque está em pecado. Só se pensa na sexualidade, não no indivíduo todo, com direito de estudar, trabalhar e ter salário igual. Isso é tão forte que se acaba aceitando a marginalização destas pessoas por causa de sua opção sexual. Ele tem um direito como cidadão que não lhe é dado.

Carlos Fernandes
Só se pensa na sexualidade, não no indivíduo como um todo. O homossexual tem direito como cidadão, que não lhe é dado

Por que ainda hoje a Igreja Evangélica tem preconceitos contra o PT?

O PT é interessante. No início, disseram que era o partido dos estudantes. Depois, dos intelectuais. Mais adiante, da Igreja Católica por causa de Frei Reno, Leonardo Boff e outros. Atribuo tudo isso à falta de politização. Sendo um partido muito contestado, a igreja luta para que não se fique nele. Não compreendem que, se tenho sucesso político, é porque Deus me dirige e abençoa neste partido. Perguntam para mim se o PT é a favor do aborto. O PT defende a descriminação do aborto, que a mulher não deve ser condenada. Mas esta não é a visão geral do partido. Eu, por exemplo, sou inteiramente contra. Do ponto-de-vista religioso, não há o que discutir. Do ponto-de-vista social, as mulheres abortam mesmo, estão morrendo, são estupradas. Devem ser criadas políticas de combate ao aborto, dando condições de trabalho a estas mulheres, garantindo que elas não ficarão desamparadas, que seus filhos terão creches. Já fiz um aborto, antes de conhecer a Cristo. É uma situação degradante e traumática. No PT, questões de foro íntimo não são fechadas.

O PT fecha questão sobre o casamento de homossexuais?

Não. Isto sequer foi colocado no programa do partido. O que o PT colocou e tratou foi o seguinte: um homossexual tem apartamento, dinheiro e tudo o mais. Vive com uma pessoa, enquanto a família não quer saber. Aí ele morre e a família pega tudo. Quem ficou cuidando não tem direito a nada. O assunto discutido no PT foi o da herança, um direito civil. É o mesmo caso dos filhos nascidos do casamento e dos outros nascidos de relação extraconjugal. Uns tem direito e os outros não? O partido tem um centralismo democrático, mas cada parlamentar tem direito de apresentar suas teses.

A senhora acha que existe machismo dentro das igrejas?

Existe. O machismo não é coisa da igreja, é das pessoas. Existe em qualquer instituição. Nós, mulheres, temos consciência disso e lutamos. Nem sempre as pessoas percebem nossa contribuição. Estive na Conferência Mundial de Pequim e pude ver o quanto a mulher progrediu, mas não conseguiu alcançar esta instância de poder.

E racismo, existe?

A igreja também vive o mito da democracia racial, a idéia de que temos uma sociedade altamente miscigenada e o negro tem seu lugar, como o mulato, o moreno etc. A sutileza deste mito se pode ver nas instâncias de poder de decisão. Onde os negros estão? Quais as grandes sedes que administram? Estão nas congregações, lugares longínquos. Já viu missionário negro estrangeiro fazendo pregações no Maracanã? Quem convidou Jesse Jackson ou Desmond Tutu? Isso não acontece nos Estados Unidos. Lá, a igreja negra se impõe. Onde você encontra os negros em nossas igrejas? Nos cânticos. Mesmo assim, os cantores negros têm dificuldades, a doutrina protestante brasileira não permite ascensão de individualidade. Às vezes, até se confunde com o PT (risos). Quando um parlamentar se destaca, a direção diz que é individualismo. As personalidades são puxadas para baixo.

Qual a sua opinião sobre a descriminação da maconha?

Tenho pouco conhecimento, não posso falar. Penso que ela é usada por um contingente muito grande e pode ser utilizada no campo da medicina, mas ainda não tenho uma posição, não sei das perdas e danos. Só sei que droga mata. Sou contra as drogas, mas quero tratá-las como trato todos os assuntos considerados polêmicos pela igreja. Quero que haja combate ao narcotráfico. Não há investimentos neste sentido no Brasil. Não é como as casas de recuperação que abrimos aqui, depósitos de abandonados. A igreja brasileira precisa envolver-se, não apenas com ação assistencialista, mas também de reintegração do indivíduo e combate à droga.

Carlos Fernandes
Já fiz um aborto antes de conhecer a Cristo. É uma situação degradante e traumática

Suas posições progressistas a distanciam de outros políticos evangélicos?

É impressionante. Os políticos evangélicos, em sua maioria, estão em seus partidos, os defendem, negociam apoio com o governo e tudo o mais. Quando é com o PT, me cobram como evangélica, não como petista. Vêm de Bíblia na mão querendo me doutrinar. Eu digo: "Olha, vocês votaram causas que, para mim, são abomináveis aos olhos de Deus. Estou votando coisas relativas a direitos dos trabalhadores, à reforma agrária." Querem que eu ignore concepções políticas que envolvem determinadas matérias. Por exemplo, concessões de rádio. Seja para quem for, quero que obedeçam o critério estabelecido pelo Conselho. Não é uma coisa de arranjo. Lembro-me que, na luta pela reforma agrária, muitos evangélicos votaram com a antiga UDR (União Democrática Ruralista). Quando o PT votou, não o fez com a concepção marxista, mas com a humana, de terra para quem nela trabalha. E eu votando com a Bíblia: "Crescei, multiplicai-vos e enchei a face da Terra." Mas como, se não há espaço?

A senhora esteve recentemente em Cuba. Como funciona a Igreja Evangélica de lá?

Não tive oportunidade de visitar igrejas. Voltei por causa das enchentes no Rio. Mas estive com o embaixador brasileiro, que é presbiteriano. A Igreja está caminhando, queixosa na questão da liberdade. Não existe uma propagação do Evangelho pelas ruas, como aqui. O povo de Deus está trabalhando dentro da abertura que Fidel (Castro) dá. A maior preocupação é não permitir infiltração de costumes americanos na religiosidade.

E qual é o futuro do socialismo no Brasil diante do neoliberalismo?

Tenho esperança de que esteja próximo. O projeto neoliberal é desintegrador, não combate a fundo os problemas de saúde, fome, bem-estar. Ele maquia e desorganiza a sociedade.

Que avaliação a senhora faz do governo de Fernando Henrique Cardoso?

O governo FHC teve respaldo político. Poderia ter avançado se sua proposta fosse, pelo menos, da social-democracia. Tenho certeza que os próprios tucanos se ressentem disto.

Por sua participação no movimento popular e seu destaque no cenário nacional, a senhora admite a possibilidade de um dia candidatar-se à presidência da República?

A política tem seu próprio giro. Não dá para dizer: "Serei isso ou aquilo." Me disponho a lutar, mas dentro da conjuntura. Tenho um ano de Senado. A gente pode até dizer: "O Lula perdeu duas vezes, não dá mais." Mas (François) Miterrand ganhou na quarta.

E a prefeitura do Rio? Por que a senhora não vai se candidatar este ano?

A prefeitura, para mim, é uma etapa já superada.

Mas a senhora não foi eleita.

Lamentavelmente a população do Rio de Janeiro perdeu. Veja as chuvas. Nosso projeto parecia simples demais, mas era o melhor para a cidade porque levava em conta a questão da segurança pública, que não se resume ao armamento da polícia. Era, sobretudo, de sustentar esta população com política de geração de empregos, de habitação popular, de contenção de encostas, de melhor transporte. Meu projeto continua sendo o mesmo, mas minha disponibilidade é outra.

Quais são as principais falhas que a senhora vê na administração Cesar Maia?

Ele falhou o tempo inteiro. Foi prepotente, enganador. O Cesar Maia foi uma farsa.

Que motivos o governador Marcello Alencar tem para constantemente atacar a Fábrica de Esperança e o reverendo Caio Fábio?

Penso que o governador sofre a síndrome da perseguição. Qualquer coisa que pareça uma contestação a seus erros ou suas responsabilidades é uma ameaça. Esta síndrome faz com que ele veja em qualquer líder um candidato em potencial ou um fiscalizador contumaz de seus erros em cada pessoa de boa-fé desta cidade.

Como a senhora vê a posição de alguns setores evangélicos que pensam que os crentes devem ter um candidato à presidência da República?

Os evangélicos devem ter um bom político, um bom administrador, como seu candidato. Pode ser um de nós, mas não necessariamente. Precisamos ter uma visão mais ampla das necessidades da sociedade. Se levarmos para nossas concepções doutrinárias sobre como a pessoa deve se comportar, seremos injustos em nossas administrações. Querer impor este comportamento à sociedade seria um desastre. Mas se tivermos uma compreensão política de justiça social e crescimento econômico, aí sim.

Muitos pastores levam candidatos ao púlpito. Qual é a sua opinião sobre esta prática?

O pastor deve proceder mais claramente. Não dá mais para fazer da igreja massa de manobra. Ele deve abrir o debate político, colocar seus interesses, sua posição e seu candidato. Temos que democratizar a política na igreja. Uma pessoa não deve receber o voto por ser um irmão, mas por ter uma proposta política. Vamos deixar dessa desfaçatez de dizer: "A gente não se mete em política, mas aqui está o irmão Fulano." Então quem não faz política é a base, porque a cúpula faz. A Universal faz isto escancaradamente. A CNBB está botanto para quebrar. O tema agora é fé e política. Alguém pode dizer: "Ela não está induzindo para qualquer partido", mas está assumindo uma posição política. A igreja deveria fazer isto.

Carlos Fernandes
Um candidato não pode receber votos por ser um irmão na fé. Vamos deixar essa desfaçatez: "A gente não se mete em política, mas o irmão Fulano é candidato"

Qual foi sua maior decepção no meio evangélico?

Não diria decepção, mas frustração com a falta de crescimento político que a gente tem no meio evangélico. Vou pegar os Estados Unidos como referência, as coisas que deveríamos imitar e não o fazemos. No culto de uma igreja americana, o pastor fala de racismo e ninguém discute. Aqui, dizemos que todos somos irmãos e isto não existe. Temos que tratar este mal. Dizem para mim: "Não, minha irmã, não existe racismo, não existe nada contra as mulheres." Onde elas estão? Na cantina, na Escola Dominical, cumprindo papéis sem destaque. Como as mulheres recebem elogio? "A minha esposa é maravilhosa, chego em casa e minha comida está ótima. Saio para a pregação e a ela fica com meus filhos." E quando tem uma Benedita, evangélica, com 'as atitudes que tenho, as primeiras a me enquadrar são as próprias mulheres.

Qual a sua maior alegria como evangélica?

É ser evangélica, ter Cristo na minha vida. O que eu contesto são coisas nossas, do corpo humano, não do Corpo de Cristo. Minha oração se torna cada dia mais curta, mas não é tão pequena que não possa dizer e repetir: "De que vale ganhar o mundo inteiro e perder a alma?" Este é o resumo de tudo para mim. Sou uma apaixonada, frágil. Agradeço a Deus pela salvação, pela minha vida, e busco n'Ele o caminho para recuperar o tempo perdido e poder servi-lo melhor. Dedico tudo a Deus, inclusive minha vida política.

O que a senhora acha das criticas que são feitas aos evangélicos por causa das igrejas que têm uma politica agressiva de arrecadação de dinheiro?

Aí é igreja como instituição, não como corpo de Cristo. É capitalismo. Na minha visão, passa a ser empresa. Sou dizimista e penso que uma igreja deve buscar entre os membros os recursos para implantar as idéias de evangelização. O dízimo é para ir para a casa do Senhor, para as obras importantes para a evangelização. Fazer disso uma empresa para tirar de quem não tem e usar aquela oferta da viúva, aí estaremos abandonando outros capítulos da Bíblia, que falam para cuidar bem delas. Entrego meu dízimo com a maior convicção, e sei que as pessoas que estão sustentando essas fábricas de fazer dinheiro que existem por aí, estão fazendo por fé, com inocência. Mas a Palavra de Deus diz que cada um dará conta de si.


Extraído Entrevista. Revista Vinde, Rio de Janeiro, ano 1996, a. 1, ed. 6, p. 6-10, abr. 1996.

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