quarta-feira, 3 de janeiro de 1996

Ame a Deus de todo o coração.
A religião, não!

Por Reverendo Caio Fábio D'Araujo Filho

O enterro de Rabin, em Israel: "Já vimos que a fé genuína pode se transformar em
fervor religioso e em fanatismo", diz Caio Fábio

"E aconteceu que, ao se completarem os dias em que devia ele ser assunto ao céu, manifestou no semblante a intrépida resolução de ir para Jerusalém, e enviou mensageiros que o antecedessem. Indo eles, entraram numa aldeia de samaritanos para lhe preparar pousada. Mas não o receberam porque o aspecto dele era de quem decisivamente ia para Jerusalém. Vendo isto, os discípulos Tiago e João perguntaram: Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para os consumir? Jesus, porém, voltando-se os repreendeu (e disse: Vós não sabeis de que espírito sois). (Pois o Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las.) E seguiram para outra aldeia." Lucas 9:51-56

O texto de Lucas, transcrito ao lado, nos mostra como a fé genuína pode ser transformada em religião fanática sem que seus atores percebam. Se não, veja: temos os "discípulos Tiago e João" tentando montar uma estratégia logística para receber Jesus numa aldeia samaritana. O esquema do evento foi montado, mas os samaritanos perceberam que Jesus tinha outra agenda no coração "porque o aspecto dele era de quem, decisivamente, ia para Jerusalém". Por isso não insistiram no programa e deixaram Jesus livre para passar. Tiago e João não gostaram. Mas como não podiam se insurgir contra o Mestre, resolveram fazer a corda quebrar do lado mais fraco, o dos samaritanos.

O FENÔMENO RELIGIOSO - Olhando para aquele episódio, é possível afirmar que amar a Deus é preciso, mas amar a religião pode ser perigoso. Aqui a gente vê como o amor a Deus pode se perverter em amor à religião. Ama a religião de modo adoecido quem ama ao grupo a que pertence e aos projetos desse grupo mais do que ao próximo. A religião é fenômeno humano de natureza histórica e circunstancial, extremamente mutável e manipulável, sofrendo de uma tendência terrível para o absolutismo e o autoritarismo que se põe a serviço dos homens e seus projetos, não de Deus. Ora, as coisas são frequentemente assim porque a religião parece ter também uma vocação quase intrínseca para o fanatismo.

A história toda dá testemunho disso. É por esta razão que muito facilmente o sentido de missão religiosa se transforma em projeto de dominação em nome de Deus. Tiago e João tinham uma missão: preparar um evento. Mas seu afã religioso de cumprir a missão a qualquer preço lhes cegou para o fato óbvio: Jesus não queria pousar ali. Isto porque quando a missão passa a ser um fim em si mesma, surge sempre o espírito da dominação. Nesse caso, tudo aquilo que aparentemente contrarie o projeto religioso é interpretado como uma declaração de guerra, aí as armas são sacadas e é hora de fazer "fogo cair do céu".

AS PRODUÇÕES DO FANATISMO Já vimos que a fé genuína pode se transformar em fervor religioso e este em fanatismo guerrilheiro. A questão agora é saber quais são os elementos que alimentam e estimulam o fanatismo religioso. Outra vez eu penso que o episódio descrito por Lucas nos ajudará imensamente a discernir aquilo do que o fanatismo se alimenta.

Antes de tudo, deve-se dizer que o fanatismo se alimenta do preconceito. Em nenhum outro momento se vê nos Evangelhos os discípulos tomados por crises de tirania, senão aqui nesta geografia do preconceito. Tiago e João eram discípulos de Jesus, mas também eram judeus. E judeus não se davam com samaritanos.

Yitzhak Rabin ao lado de Bill Clinton e Yasser Arafat, num aperto de mãos que selaria
o Acordo de paz de Oslo, no dia 13 de setembro de 1993.

É aqui que a fé pode virar religião e a religião, fanatismo. Quando nosso fervor de fé se mistura aos nossos preconceitos culturais e esses às nossas frustrações pessoais, especialmente aquelas provocadas pelos "execráveis" samaritanos das nossas histórias. O espírito exclusivista também aparece como um dos energizadores do fanatismo religioso. Foi por isso que Tiago e João reagiram tão fortemente. Eles estavam sutilmente tomados pela idéia de que Jesus lhes pertencia. Não eram eles que pertenciam a Jesus. Era o contrário. O fanatismo sempre nos passa a idéia de que Deus está sob a nossa tutela. A gente pensa que tem de defender os interesses de Deus com fervor guerrilheiro, esquecidos de fato de que tais causas nada mais são que nossos e próprios caprichos sob a máscara da religiosidade e da verdade. Além disso, o fanatismo religioso frequentemente se serve do sobrenatural na intenção de usá-lo como elemento de validação de suas ações e exageros. A idéia é de que se o sobrenatural acontece, ele autentica o contexto no qual se manifestou. A prova dos nove em relação à verdade do episódio seria tirada com "fogo do céu". Assim é que todos os dias vemos grupos fanáticos tentando sustentar ações loucas a partir da afirmação de que os milagres que acontecem no seu meio dão genuinidade a tudo o que eles praticam. A lógica é simples: contra milagres até a verdade tem de se curvar.

FANATISMO E PODER - O fanatismo religioso também desenvolve fortíssima relação com o poder, seja ele de que tipo for. A razão é simples: o fanatismo não sobrevive na relatividade. Ele depende fundamentalmente de critérios absolutos, tanto no plano das idéias (dogmas), quanto no âmbito das demonstrações de força (seja a guerra, a economia ou o "fogo do céu"). É fácil perceber isto no episódio dos discípulos Tiago e João na aldeia dos samaritanos. Primeiro, eles imaginam que o poder para realizar seu show de superioridade racial e religiosa lhes seria disponibilizado por Deus, pelo fato de Jesus ser solidário com seu ridículo descontentamento. O trabalho que eles realizaram na preparação para o evento não poderia ser desperdiçado. Por isso, fogo neles. E Jesus é solicitado a endossar a decisão de fazer churrasco samaritano: "queres que façamos descer fogo do céu?" Além disso, eles também pensaram que eram os executivos da Empresa Multi-Universal da Energia Divina: "queres que mandemos descer fogo do céu?" Se Jesus quiser, eles mandam. Eles são os exatores de Deus na terra. E, por último, eles entendem o poder como algo que eventualmente pode ser utilizado para destruir os homens: "fogo para os consumir".

E EU COM ISSO? - Muita gente não está entendendo porque eu estou gastando todo este espaço para falar de fanatismo religioso. Afinal, gente fanática não lê a revista VINDE. Entretanto, nós não devemos nos esquecer de que aqueles que são o objeto do nosso estudo são pessoas muito boas e especiais, mas que viram-se contagiadas por esse espírito. Eles eram Tiago e João, e isto lhes aconteceu enquanto Jesus estava com eles, não foi dois mil anos depois. Ou seja, se aconteceu a eles, pode acontecer a você e a mim. Entretanto, no mesmo texto do Evangelho onde nós recebemos advertências sobre o fanatismo religioso, também aprendemos como ser salvos dele.

Para inocular em nós o antídoto antifanatismo, a gente tem de se perguntar sempre se nossa vida ainda guarda alguma relação com o espírito do Evangelho. Ou seja: a gente tem de ouvir a voz de Jesus denunciando: "Vós não sabeis de que espírito sois". Isto porque às vezes, sem pressentir, a gente vai se distanciando completamente do espírito amoroso, misericordioso, solidário e inclusivo de Jesus, e caímos na religião da exclusão, da vingança, do julgamento e da guerra. Além disso, a gente também tem de saber sempre que Jesus não tem nenhum tipo de relação com as ações de aniquilação humana, mesmo que feitas em nome de Deus. "O Filho do homem não veio para destruir as almas dos homens, mas para salvá-las". Sabendo disso tudo, vale reafirmar nosso chamado para amar a Deus com todos os recursos da emoção, da afeição, da força e da inteligência, e ao próximo com o mesmo interesse com o qual a gente trata de nossas próprias causas, sendo, entretanto, capazes de repudiar todas as tentativas de fanatização que nos surjam, mesmo aquelas mais carismaticamente fantasiadas de fé intrépida. Aquela do tipo que invoca "fogo do céu" para consumir os homens que não pertencem ao nosso grupo.

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