terça-feira, 2 de janeiro de 1996

Condenados sem provas

Duzentos evangélicos estão presos injustamente, acusados de envolvimento com o terrorismo no Peru

Por Jorge Antonio Barros

Texto e fotos de Jorge Antonio Barros
enviado especial a Lima e Ayacucho, via d'Ávila Tours

Segundo estado mais pobre do Peru,
Ayacucho é o berço do Sendero Luminoso

MARCADO pela desigualdade social, o Peru vive, na surdina, outra cruel contradição em consequência da luta ferrenha desencadeada pelo governo forte de Alberto Fujimori contra o terrorismo que devastou o país. Enquanto a igreja evangélica, assim como a sociedade peruana, se vê tranquilizada pelos resultados da Dincote (Direção Nacional de Combate ao Terrorismo), da Polícia Nacional Peruana, mofam nos cárceres do país nada menos que 200 evangélicos, condenados injustamente a penas que variam de cinco a 30 anos, acusados de envolvimento com o grupo guerrilheiro Sendero Luminoso, um dos mais violentos que já surgiu na América Latina.

Arcangel Saurie escapou da emboscada que resultou
na morte do primo Rômulo e acabou sendo eleito
congressista no Peru

A contradição maior é que foi justamente o Sendero Luminoso que, na tarde de 5 de setembro de 1992, matou, numa emboscada em Ayacucho, quatro evangélicos, entre eles o líder quéchua (povo indígena) Rômulo Saufie, que virou um mártir da igreja evangélica peruana e tema do livro Ayacucho para Cristo, dos americanos W. Terryn Whalin e Chris Woehr (ver matéria na página 32). Uma semana após a morte dos quatro de Ayacucho (Rômulo; seu irmão, Ruben; o sobrinho Marco e o primo Josue), foi preso o líder e fundador do Sendero Luminoso, professor Abimael Guzman, condenado a prisão perpétua. O governo Fujimori começava a dar o xeque-mate numa disputa que resultou, ao longo de 15 anos, em mais de 20 mil mortos e um prejuízo de 22 milhões de dólares ao país.

SOBREVIVENTE - Único sobrevivente da emboscada do Sendero em Ayacucho, Arcangel Miguel Quicafia, 44 anos, primo e amigo de infância de Rómulo Saufie, foi eleito congressista dois anos após o atentado. "A igreja evangélica teve um papel muito importante no combate ao terrorismo no Peru", afirma Quicafia, que esteve no Brasil em 1993 dando seu testemunho em várias igrejas evangélicas. "Só Deus sabe porque fui salvo das balas do Sendero", conta Quicaria. Depois de eleito, ele não usa mais o primeiro nome. "Arcangel foi morto com Rômulo", dramatiza.

Se a igreja foi mesmo uma das forças que freou o avanço do Sendero, como diz Quicafia, por que então mais de 700 evangélicos já pararam atrás das grades, acusados de terrorismo? No afã de combater o terrorismo que se instalou no país no início da década de 80, o governo forte de Fujimori decretou a lei do arrependimento, que reduz a pena de militantes na guerrilha em troca da delação. Para se vingar de evangélicos com os quais se confrontavam, os guerrilheiros forjaram denúncias envolvendo os religiosos. Um advogado que integrou a comissão de direitos humanos do Conep (Concílio Nacional Evangélico do Peru) obteve informações de que guerrilheiros do Sendero Luminoso chegaram ao requinte de esconder armas em igrejas para incriminar evangélicos.

A 3 mil metros, Ayacucho virou uma dos bases da ação do Sendero Luminoso

DENÚNCIAS FALSAS - As principais consequências dessas denúncias falsas foram processos sumários, julgados às pressas em tribunais sem rosto e com provas inconsistentes. Um dos casos mais dramáticos é o do casal Juan Carlos Chuchon Zea e Pelagia Salcedo Pizarro, membros da Assembléia de Deus, condenados injustamente a 30 anos de prisão. Em 11 de dezembro de 1992, eles foram detidos em casa, num subúrbio de Lima, acusados de integrar o Socorro Popular, organização de apoio ao Sendero. Sem a presença do ministério público, a polícia invadiu a casa de Chuchon, onde alegou ter encontrado granadas, munição, explosivos e material de propaganda subversiva.

Chuchon e a mulher garantiram que o material foi plantado pela polícia, depois de serem submetidos a uma longa sessão de torturas na presença dos dois filhos. Hoje, Chuchon e Pelagia estão, respectivamente, nas prisões de segurança máxima de Yanamayo e Santa Mônica. A história do casal de evangélicos condenados injustamente é um símbolo da crueldade de que tem sido vítima a igreja evangélica peruana. Nascidos em Ayacucho - onde também nasceu o Sendero Luminoso - eles deixaram a cidade depois que vários parentes seus foram assassinados pelo Sendero. Deixaram sua cidade natal para escapar do grupo terrorista. Mas acabaram sendo vítimas da repressão policial em Lima.

Juan Mallea, com o filho, virou bode expiatório
de grupos paramilitares

Outro evangélico, o taxista Juan Mallea, de 36 anos, também virou símbolo da luta da igreja contra o autoritarismo no Peru. Preso com um guerrilheiro no banco de trás de seu táxi, Mallea foi acusado de participar do massacre de La Cantuta, em que nove estudantes e um professor universitário desapareceram em 1992. O governo queria transformá-lo num bode expiatório para esconder a ação de grupos paramilitares - estes sim, responsáveis pelas mortes dos universitários. Mas o Conep, com apoio do movimento internacional de direitos humanos, conseguiu provar a inocência de Mallea.

GUERRA SUJA - Assim como na Colômbia, a igreja evangélica peruana sobrevive entre as bombas do terrorismo e os fuzis dos militares. A partir do massacre de Callqui, em que seis evangélicos foram executados por militares, em 1984, a igreja perdeu as ilusões de que poderia estar a salvo nas mãos da repressão. O caso serviu também para despertar entidades como o Conep, que existe há meio século, mas somente na última década começou a se preocupar mais com a questão dos direitos humanos naquele país.

O governo Fujimori combateu o
terrorismo com uma propaganda violenta

O massacre de Callqui deixou marcas. "Cantem, cantem para não ouvir os tiros", diziam os oficiais para os fiéis em pleno culto de onde foram tiradas as vítimas. A reportagem de VINDE localizou pelo menos um militar que confessa alguns métodos da guerra suja no combate à guerrilha. Nascido em lar evangélico, o ex-sargento Oscar Huarac Sanchez, 26 anos, serviu o Exército por dois anos na região de Ayacucho, no auge do Sendero Luminoso. Ali testemunhou ações genocidas do Exército contra povoados onde os senderistas se refugiavam após ações terroristas. Certa vez, ele conta, os oficiais enviaram helicópteros para bombardear um pequeno povoado sem a menor confirmação de que lá se escondiam guerrilheiros. Ele revela também ter visto os soldados disputarem quem era mais violento matando terroristas e tirando-lhes o coração a punhaladas.

Um temor nasceu no coração do sargento Huarac quando seus superiores determinaram que as tropas fizessem uma operação pente fino nas igrejas evangélicas da região de Ayacucho em busca de provas de uma fantasiosa conexão entre o Sendero e os cristãos. "Foi aí que pensei em deixar o Exército", lembra Huarac.

Curiosamente, "onde a violência foi mais dura houve o fenômeno da multiplicação de cristãos", conta o missionário e cientista Pedro Hocking, coordenador da Rede Ágape no Peru. A Rede Ágape, vinculada à missão Portas Abertas, atua em favor da igreja perseguida na América Latina. "A igreja peruana já aprendeu a fazer uma oração de guerra contra principados e potestades que estão por trás da violência", diz Hocking. No final do ano passado, o Conep lançou em todo o país a campanha de oração e solidariedade aos detidos injustamente por terrorismo.

O missionário Pedro Hocking diz ter provas de sobra do poder da oração. Ele lembra que, no auge da guerra, a igreja conquistou uma coleção de testemunhos de "milagres de proteção" - armas que engasgavam e navalhas cujos fios simplesmente não cortavam.

Sendero de mortes e trevas


Após a captura do líder Abimael Guzmán Reynoso, o presidente Gonzalo, houve um racha no Sendero Luminoso. Um grupo concordou em se empenhar num acordo de paz com o governo peruano, enquanto outro optou por permanecer na clandestinidade, prolongando a luta armada em direção do sonho de uma revolução maoísta. Este grupo - mais intransigente é formado hoje por não mais do que 600 homens escondidos nas selvas peruanas, sob o comando do ex-estrategista militar de Gusmán, Oscar Alberto Ramirez Durand, o camarada Feliciano, um homem de 42 anos disposto a tudo para não se dar por derrotado. Filho do general de Brigada do Exército peruano Oscar Ramirez Martinez - que o deserdou - o camarada Feliciano é hoje o homem mais procurado do país. Com o que restou do Sendero, ele se movimenta a cavalo pelas selvas do Estado de Ayacucho, justamente onde nasceu o Sendero Luminoso.

Embora esteja reduzido à sua quarta parte, o Sendero Luminoso ainda representa um perigo para o governo peruano, que enfrenta também ações do grupo menos radical MRT (Movimento Revolucionário Tupac Amaru). Temendo ser alvo de algum atentado, o presidente Alberto Fujimori não se movimenta no país sem estar escoltado por forte esquema de segurança. Foi assim na última semana de outubro do ano passado, quando ele esteve em visita a Ayacucho. Ali, Fujimori admitiu que o poder judiciário é lento, mas vai revisar as penas de condenados injustamente por terrorismo.

A 800km de Lima, Ayacucho fica a cerca de 3 mil metros de altitude. É o local de origem do Sendero Luminoso, em 1980. Uma das sementes do Sendero foi, sem dúvida, a miséria e a desigualdade social que marcam o Peru. A capital do país, Lima, tem hoje 50% da população vivendo em favelas. Ayacucho é o segundo Estado mais pobre do Peru. Sua renda per capita não chega a um terço da média nacional, como diz o professor mexicano de Ciências Políticas e Sociais Jorge Castarieda, autor do livro Utopia Desarmada, que conta a história dos grupos de esquerda na América Latina.

Nesse terreno fértil, o Sendero Luminoso transformou-se num dos mais violentos e intransigentes grupos armados da esquerda latino-americana. Repórter da Unidade Investigativa do El Comercio, Miguel Ramirez lembra que a violência do Sendero atingiu o auge em 1992, com a explosão de um carro-bomba num edifício da Rua Taram, no bairro de Miraflores, onde vive a nata da sociedade limenha. A ação terrorista resultou em 15 mortes.

Os números da guerra anti-terror

  • Mortos: entre 20 mil e 30 mil, 735 deles evangélicos
  • Refugiados: 700 mil
  • Exilados: 300 mil pessoas deixaram país, em 91, no auge do terrorismo
  • Desaparecidos: 5 mil
  • Presos Políticos: 1 mil
  • Prejuízos: US$ 22 milhões

* Dados relativos aos últimos 15 anos

Os Saufie, uma saga de sangue


Josué Sautie sucedeu o irmão Rômulo (entre a irmã e a tia) à frente dos evangélicos quéchuas peruanos

Descendente do império inca, a família Saufie tem uma saga escrita com sangue. Três anos antes da morte dos quatro de Ayacucho, entre eles o líder cristão quéchua Rômulo Saufie, foi assassinado o avô dele, Justiniano Quicara. O ancião teve a língua cortada por integrantes do Sendero Luminoso, o mesmo grupo que matou seus netos, curiosamente no mesmo local - Chalciqpampa, lugarejo nos andes a cerca de 151cm de Ayacucho, no sudeste do Peru. A região é dominada pelos quéchuas, povo indígena que vive no Peru, Bolívia e Equador.

Josué Sautie

Casado com a americana Donna Saufie, com quem teve quatro filhos, Rômulo Saufie era conhecido por missionários de todo o mundo por sua liderança cristã entre os quéchuas peruanos. Ele se tornou célebre ao concluir a tradução da Bíblia para a língua quéchua após 13 anos de trabalho, com a ajuda do missionário presbiteriano Homer Emerson, já morto. Rômulo foi assassinado pelo Sendero pouco depois de concluir o trabalho. "Quando terminar, quero levar a Palavra de Deus aos muçulmanos", dizia Rômulo à mulher, Donna.

No dia 5 de setembro de 1992, Rômulo e seus parentes retornavam de um culto em memória do avô, Justiniano. Na estrada dos Libertadores, que leva à Ayacucho, o grupo foi vítima da emboscada do Sendero. Os guerrilheiros haviam incendiado cerca de 30 veículos que foram obrigados a parar. Filha de missionários americanos que chegaram no Peru na década de 50, a viúva de Rômulo lembra que o país vivia o auge da guerra promovida pelo Sendero. Por sua militância evangélica, Rômulo já havia recebido ameaças do Sendero Luminoso.

O assassinato dos evangélicos quéchuas repercutiu como um estrondo entre as missões cristãs no mundo inteiro, que imediatamente entraram em oração para que Deus desse um basta à ação terrorista no Peru. Por isso, Donna não acredita que tenha sido simples coincidência a prisão do líder do Sendero, Abimael Guzmán. Uma semana depois do assassinato, Guzmán foi pego e, logo depois, condenado à prisão perpétua. Quem não se lembra das imagens de Guzmán enjaulado como uma fera, metido numa roupa listrada?

A prisão do líder e fundador do grupo maoísta nascido nas salas de aula da Universidade de San Cristoban de Huamanga, em Ayacucho, foi o golpe de misericórdia no Sendero. Aos poucos, o país supera o trauma do terrorismo, enquanto a igreja evangélica quéchua acaba de ganhar um novo líder: Josue Saufie trotou uma vida confortável nos Estados Unidos como designer de jóias pela missão de prosseguir o trabalho do irmão Rômulo no Peru. "O que mais importa hoje é fazer a obra de Deus. É ser rico com Ele nos céus", garante Josue, um ex-delinquente que, por pouco, não ingressou no Sendero Luminoso. Nascido em lar evangélico, se afastou da igreja até parar na cadeia, onde seria condenado a 15 anos. No dia em que planejava fugir da prisão, teve uma visão em que um homem resplandescente lhe disse: "Todos os seus pecados estão perdoados. Segue-me".

IGREJA EM CRESCIMENTO

  • Nome oficial: Peru
  • Capital: Lima
  • Nacionalidade: peruana
  • Idioma: aimará, espanhol e quéchua (oficiais)
  • População: 22,9 milhões (1994)
  • Religião: maioria católica e cerca de 8% de evangélicos
  • Data nacional: 28/07 (Independência)
  • Moeda: sol novo

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